Primeira parte do Capítulo 3 de SÁRDIRUS - A TERRA LENDÁRIA DO AGRESTE
3 –
A
BARGANHA COM O QUITANDEIRO
No outro dia, de manhã cedo, Leônidas acordou
sentindo o cheirinho característico de cuscuz, do qual sempre lembrava quando
estava em Teresina. Era impressionante como o cuscuz preparado por tia Sofia
não levava nenhum ingrediente de singular importância e mesmo assim tinha
aquele sabor inigualável. Talvez fosse a magia culinária peculiar àqueles que
preparam o alimento para as pessoas mais especiais de suas vidas.
Ah, não! – pensou Leônidas, contrariado. É que uma das etapas do plano de
Alberto consistia em irem comprar pão na mercearia assim que acordassem; e o
que justificaria a compra dos pães se não alegassem que não iriam querer
cuscuz? Droga, Sapo-Pinga!
A
mercearia de seu João da Mata ficava a dois quarteirões da casa de Alberto. E
naquela manhã era imprescindível falar com o velho comerciante antes que Sofia
fosse fazer as compras do dia. O meio mais prático, para evitar suspeitas, era
ir comprar pães logo que acordassem, antecipando-se a Sofia e abrindo mão de
saborear o delicioso cuscuz.
Não foi
sem a admiração dos pais que os dois garotos se levantaram, escovaram os dentes
e pentearam os cabelos com tanta excitação, vindo pedir, logo em seguida, o
dinheiro para irem à mercearia.
– Alberto
é assim – começa Sofia –, de tanto comer cuscuz no café da manhã a vida toda,
tem dia que enjoa e não quer sentir nem o cheiro. E Leozinho, acostumado com as
delícias de panificadora lá da capital, imagina se vai gostar de cuscuz.
– Não é
nada disso, tia – emenda Leônidas, com medo de, além de tudo, estar magoando
Sofia e sendo ingrato com ela.
– Prometo
que amanhã eu e Leozinho, sozinhos, comeremos uma banda do seu cuscuz, mãe –
interveio Alberto. – Mas hoje eu tou querendo pão, e convidei meu sócio aqui
pra me acompanhar nessa.
Todos
acharam graça na utilização do termo “sócio”. O que nem desconfiavam era que o
emprego da palavra não estava completamente fora de contexto.
De posse
do dinheiro, saíram a passo miúdo rumo à mercearia de seu João da Mata.
Leônidas ainda se sentia meio contrariado pelo risco de ser mal interpretado
pela tia.
– Eu não
quero que ela e o tio Ramiro fiquem pensando que eu tou me tornando um
Mauricinho, entendeu?
Alberto
sorri da preocupação do primo.
– Fica
frio, Leozinho. Eles sabem que o lance do pão foi por minha causa. Agora a
gente tem que se concentrar, o papo com o velho talvez seja duro. Mas a gente
não pode abrir mão da ajuda dele. Temos que ser firmes.
Em um
minuto subiam a calçada e entravam pelo portão largo da mercearia. Àquele
horário, falar em particular com seu João da Mata era quase impossível, de tão
lotado que ficava o comércio. Porém, Alberto tinha os seus trunfos com o velho,
embora nunca os tivesse utilizado para obter nada dele. Dessa vez seria
diferente, caso seu João se recusasse a colaborar.
Esgueirando-se
por entre os diversos clientes, os quais aguardavam em pé a vez de serem
atendidos, Alberto alcançou a portinhola, no canto direito do balcão, que dava
acesso à parte interna da mercearia, onde seu João da Mata e um ajudante
atendiam os fregueses. Leônidas, achando que não era de casa o suficiente para
seguir o primo, esperou do lado de fora.
– Quer
uma ajudinha aí, seu João? – perguntou o menino, já ao lado do quitandeiro e o surpreendendo
com sua presença ali.
– Ora, se
não é o fantasminha do Sapo-Pinga, que entra nos lugares sem ser notado!
– Seu amiguinho das horas difíceis – insinuou
Alberto.
Seu João
da Mata não deixou de perceber um certo cinismo brejeiro na expressão do
menino. Terminou de empacotar as mercadorias do cliente que estava atendendo,
despachou-o e, em seguida, fingindo afagar a cabeça do garoto e lhe dizer
coisas amáveis, agachou-se e quis saber:
– Diga,
seu pirralho: o que é que está passando por essa cabecinha de guabiraba, hein?
Sei muito bem que nas férias você não acorda esse horário. E nunca entra na
minha bodega com essa saliência toda, a não ser que esteja tramando uma das
suas.
Alberto
deixa fluir um sorriso tão infantil quanto malicioso.
– Uma das
minhas não, seu João. Dessa vez é uma das
nossas. Coisa pequena. É só um favorzinho do meu velho parceiro – e dá um
tapinha no ombro do quitandeiro.
– Sei –
faz seu João, com ar de desdém. – Pois volte aqui lá pra mais tarde, que agora,
se você prestar bem atenção ao seu redor, a mercearia está cheia de gente pra
atender e o Domingos só tem duas mãos.
Dizendo
isso, seu João da Mata voltou a se erguer e fez menção de se afastar de
Alberto.
– Espere,
seu João – diz o menino, segurando a mão do velho. – Sei que o senhor está
muito ocupado, e peço desculpas por lhe atrapalhar, mas vou ter que fazer isso.
Daqui a pouco minha mãe virá aqui fazer as compras do dia, e a minha conversa
com o senhor precisa ser antes disso. Sinto muito, seu João, mas exijo falar
com o senhor agora.
A palavra
“exijo” trazia uma carga de insinuação tão evidente que fez o velho, incrédulo,
captar uma sutil ameaça.
Seu João
da Mata trabalhava com uma grande variedade de produtos em sua mercearia, desde
utensílios de plástico, alumínio, louça e vidro, cosméticos e material de
limpeza em geral, até os produtos alimentícios básicos de todos os tipos, além
de bebidas alcoólicas. Acontece que seu João também vendia produtos de
fabricação mais artesanal, caseira, como o detergente, a cachaça e o mel. Pois
bem, digamos que seu João nem sempre era politicamente correto na fabricação
desses produtos, e que, geralmente, contratava como ajudante algum dos meninos
da vizinhança, filho de algum velho conhecido. E como era um dos pequenos
habitantes mais populares do bairro Paulo VI, Alberto já tinha desempenhado
muitas vezes aquela função, conhecendo alguns segredos sobre o velho
quitandeiro que ele não desejaria ver revelados. E, pela primeira vez em sua
vida, Alberto percebia o lado sordidamente vantajoso de ser o depositário dos
segredos de alguém, embora em seu íntimo também vivesse um conflito que não
sabia nomear, mas que se chamava autocensura. Algo lhe dizia que estava sendo
incorreto, mas como os segredos que guardava eram justamente sobre os atos
incorretos de alguém, sentia-se justificado.
Seu João
da Mata olhou fundo nos olhos de Alberto. Convencido de que a postura do menino
era irredutível, virou-se para Domingos, seu ajudante, e pediu:
– Segure
as pontas aí dois minutinhos. Tenho que mandar um recado ali por esse pirralho.
– Em seguida começou a sair pela porta que ligava o recinto da mercearia à sala
de sua casa, fazendo um sinal para que Alberto o seguisse. Alberto, por sua
vez, fez um sinal por cima do balcão para Leônidas, indicando-lhe a portinhola
do canto direito e pedindo que ele entrasse para acompanhar a conversa. Não
muito à vontade, Leônidas foi pedindo licença e entrando.
Como se
quisesse se afastar o máximo possível dos seus clientes naquele momento, seu
João cruzou a sala de estar, a sala de jantar, seguiu por um breve corredor que
dava acesso á cozinha, e daí cruzou a porta, chegando ao quintal. Ao se virar
para seu pequeno interlocutor, notou que agora havia um outro menino ao lado do
primeiro, e estranhou.
– Este é
meu primo Leônidas, seu João. O senhor deve se lembrar dele. Ele mora em
Teresina, mas sempre vem passar as férias aqui. Fazia dois anos que ele não
vinha, mas dessa vez ele veio por um motivo especial: veio pra realizar um
sonho.
Seu João
fez uma cara divertida ao olhar para Leônidas, o qual ficou meio encabulado.
– Ora,
ora! Um ilustre visitante da nossa amada capital. Lembro sim, como não
lembraria? Você é o filho de dona Rita, a irmã mais nova de dona Sofia do
Ramiro, não é isso? Cresceu, hein rapaz! E veio para realizar um sonho, não
foi? Na idade de vocês tudo que a gente faz é sonhar. Mas me diga, que sonho é
esse que tinha de ser realizado numa cidadezinha pacata e de gente tão acanhada
como a nossa?
– Bem, é...
– Leônidas procurava as palavras.
– Ele
quer conhecer a Serra de Santo Antonio, seu João – disparou Alberto.
Seu João
não conteve uma gargalhada. Mas, vendo que os meninos se mantinham sérios, logo
se recompôs.
– Meu
caro jovem metropolitano – começou o velho, dirigindo-se a Leônidas –, os
rapazinhos da capital, como você, costumam ser mais ambiciosos. Mas, se o que
você quer é conhecer a nossa bela montanha, não vejo qual o obstáculo, afinal o
meu amigo Ramiro nasceu e se criou em Campo Maior, é pescador e caçador,
conhece como poucos todos os arredores da cidade, e tenho certeza de que ele
adoraria levar o sobrinho, com toda a família, para este agradável passeio.
–
Verdade, senhor. Eu...
– Papai
adoraria sim, seu João – retrucou Alberto. – Mas nós precisamos e queremos ir
sozinhos.
–
Sozinhos! – escandalizou-se o quitandeiro. – Duas crianças como vocês, sozinhos
na mata, sem nenhum adulto por perto? E como vão chegar até lá?
– É aí
que o senhor entra na história – revelou Alberto.
Seu João
primeiro sobressaltou-se. Ficou parado, fitando o menino com interesse. Depois
deu um passo para trás, arregalando os olhos. Parecia ter captado o sentido da
conversa.
– Ora,
Sapo-Pinga, seu bichinho atentado, o que eu devia fazer era recomendar à sua
mãe que lhe desse a bela de uma surra. Acha mesmo que vou levar você e seu
primo pra largar no meio da mata, voltar pra casa, e depois receber uma
intimação da polícia pra dar conta de vocês? Fora daqui, seu brejeiro! Minha
bodega está lotada de clientes, e eu tenho muito o que fazer. Vou mandar o
Domingos entregar os seus pães, e quero que você desapareça. Me desculpe,
Leônidas, mas esse seu primo às vezes passa dos limites.
– Tudo
bem, senhor. Vamos, Alberto – disse Leônidas, vermelho de constrangimento.
(E agora? Será que Alberto vai desistir? Não perca, no próximo post!!!
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