Continuação do Capítulo 2 de SÁRDIRUS - A TERRA LENDÁRIA DO AGRESTE
2 –
UM
SONHO, UM PLANO
E
HISTÓRIAS FANTÁSTICAS
(Continuação)
Lá pelas
sete da noite Ramiro apareceu, chegando em sua bicicleta repleta de acessórios
de pesca – duas varas de anzol, uma tarrafa, iscas – e um cesto cheio de peixes
pendurado no guidão. Os cumprimentos entre ele e os parentes da capital foram
efusivos, mostrando a intensidade do afeto, que era recíproco.
– Quem é
vivo uma hora ou outra aparece! – repetia Ramiro alegremente, em alusão aos
dois anos em que eles deixaram de vir a Campo Maior no período de férias.
E no meio
do animado converseiro, acenderam a churrasqueira a carvão no terreiro e
assaram as suculentas traíras e os carás da pescaria de Ramiro. Sofia preparara
um baião de dois e uma jarra enorme de suco de cajá geladinho, para
acompanhamento do peixe assado.
– Conte
aí uma das suas histórias, tio – propôs Leônidas com os olhos brilhantes. Ele
adorava as histórias de pescador e de caçador do tio.
Ramiro,
como já conhecia e ainda se lembrava bem do gosto do sobrinho, não precisou
improvisar muito. Na verdade, todos os anos contava basicamente as mesmas
histórias, apenas dando pinceladas de novidade, acrescentando fatos aqui e
acolá. Então começou a falar dos fantasmas de soldados que assombravam os
pescadores à noite, no rio Jenipapo, onde houve a histórica batalha em 1823. Às
margens daquele rio, camponeses armados apenas com suas ferramentas do trabalho
agrícola enfrentaram as tropas portuguesas, as quais estavam aparelhadas com o
melhor material bélico da época e comandadas pelo experiente e renomado Major
Fidié. Fora um verdadeiro massacre. Centenas de revolucionários campomaiorenses
foram mortos em um só dia. No entanto, a astúcia dos comandantes rebeldes
conseguiu surpreender o exército lusitano, lançando suas armas nas águas do
rio, obrigando-o a recuar. Mas apesar da vitória, dizia Ramiro, para o fascínio
do sobrinho, as almas dos camponeses mortos ainda hoje saíam à noite clamando
por justiça na beira do rio, e as dos soldados portugueses, imploravam o
regresso para a pátria de origem.
Todavia,
o momento mais aguardado das narrativas fantásticas de Ramiro era quando ele
falava das assombrações da Serra de Santo Antonio. Contava das vezes que tinha
ido caçar lá, à noite, e ouvira vozes entoando cânticos misteriosos, como coros
de índios cultuando os seus deuses. Dizia ainda que, em alguns pontos da mata,
no sopé da montanha, muitos vultos apareciam e se escondiam atrás das pedras.
E a
principal de todas as histórias sempre era contada no final. Segundo a lenda, a
Serra de Santo Antonio, num passado já muito remoto, havia sido um pequeno
povoado, onde os poucos habitantes levavam uma existência pacata e reinava a
harmonia. Até que um dia, não se sabe como e nem por qual motivo, foi ativado
naquele lugarejo algum tipo de encantamento, de misterioso feitiço. Se foi obra
de algum feiticeiro humano ou de um espírito muito poderoso, também é um fato desconhecido.
O que se sabia era que o encanto foi tão forte e bem realizado, que o antigo
povoado se transformou em montanha, com toda a sua população lá dentro. Os
caçadores costumavam dizer que as aparições na Serra nada mais eram do que seus
moradores encantados, os quais ansiavam pelo dia de se libertarem daquele
feitiço. Dizem também que no dia em que a Serra se desencantar, Campo Maior se
encantará.
Leônidas se
deliciava, entrava em transe, ouvindo as histórias do tio.
Depois de
saborearem o peixe assado, ouvindo as narrativas sobrenaturais de Ramiro,
deixaram a prosa correr solta, sobre os mais variados e corriqueiros assuntos.
E tão leve e descontraída era a conversa que, em alguns momentos, falavam todos
ao mesmo tempo, porém sem que ninguém impusesse um tema único ou tentasse ser o
dono da atenção geral. A seu modo, movidos pela satisfação do reencontro
familiar, eles conseguiam se entender e fazer daquela verborragia um diálogo.
Gozaram
dessa farra até por volta da meia-noite, quando o sono começou a chegar.
– Mãe,
tia Sofia, vocês podem deixar eu e Alberto ficarmos aqui no terreiro mais um
pouquinho? – pediu Leônidas.
O garoto
da capital, em seu íntimo, desejava mesmo era ficar apreciando aquele céu de
estrelas rutilantes a noite inteira. Em Teresina, devido à automatização dos
hábitos metropolitanos, quase nunca parava para admirar a beleza do universo, à
noite. E agradecia pela localização periférica da casa de tia Sofia, pois,
mesmo numa cidade do interior, como Campo Maior, os costumes mais simples iam
sendo suplantados pelos modelos comportamentais da mídia. Com o acesso fácil à
tecnologia e o relativo desenvolvimento das pequenas cidades, o gesto de parar
para apreciar as estrelas seria facilmente classificado como “matutice” por
qualquer garoto interiorano das últimas décadas. Leônidas sabia disso, e
lamentava.
– Acho
que podemos dar mais quinze minutinhos pra vocês. O que você me diz, Rita? –
propôs Sofia, com uma piscada de olho para a irmã.
– No
máximo isso. E saiba que essa é uma concessão de férias, viu?, senhor Leônidas.
Não tenho como dormir sabendo que você e seu primo estão do lado de fora de
casa, com a rua já toda deserta.
– Ok,
mãe. Quinze minutinhos, e vamos dormir. Prometo.
E
enquanto se recolhiam, entrando na sala, as duas irmãs e os esposos sorriam e
comentavam enternecidos sobre o apego dos garotos um pelo outro.
– O
Alberto só fala na vinda de vocês, durante o ano inteiro – segreda Ramiro. – Às
vezes ele até se impacienta e pede pra gente ligar e convidar vocês pra virem
passar um final de semana por aqui.
–
Leozinho é o irmão que ele não teve – declara Sofia. – Ele nunca foi de se
isolar, tem amigos com quem brinca muito aqui no bairro e na escola. Mas com o
Leozinho é diferente, é especial pra ele. Quando os dois estão juntos, parece
que ele não sente a menor falta dos outros colegas. E quando vocês voltam pra
Teresina ele fica com aquele brilho de tristeza nos olhinhos por vários dias.
– Com o
Leozinho acontece exatamente o mesmo – afirma Rita. – Por várias vezes já
chegou até a nos perguntar se não teria alguma chance de vocês deixarem o
Alberto ir morar com a gente.
– E às
vezes ele também pede pra virmos passear durante o ano, fora do período de
férias – completa Wellington. – Aí temos que fazer um verdadeiro relatório das
dificuldades que, segundo ele diz, já tem de cor, de tanto a gente repetir. Nas
outras coisas, se a gente diz que não dá, ele nunca insiste muito; mas quando o
assunto é esse, dá um trabalhão pra ele desistir. A gente tem que se virar pra
convencê-lo de que as férias estão chegando de novo.
No
terreiro, rodeados pela cerca de madeira, com a cancela já trancada no cadeado
e a lâmpada do oitão apagada, para melhor apreciarem a luz natural dos astros,
os dois primos conversam baixinho.
– Tem
certeza que isso vai dar certo, Alberto?
– Claro
que vai, Leozinho. Você vai ver, vai ser a coisa mais legal que a gente já fez
na nossa vida.
Leônidas
sente um misto de alegria e apreensão.
– Sei lá,
cara. Eu acredito que vai ser muito divertido, mas a ideia de a gente enganar
todo mundo está me incomodando. Acho que me educaram pra ser certinho demais.
– Deixa
de exagero, Leozinho. A gente não vai cometer nenhum crime. Vamos apenas
realizar um desejo, e de uma maneira que não prejudica ninguém.
De
repente, enquanto ainda falava, Alberto tira a camisa o mais rápido que
consegue, dando-lhe um nó, e fecha os olhos, como numa prece. Leônidas ainda
tem tempo de ver, por um curto instante, a cauda luminosa de uma estrela
cadente deslizando no céu como bomba corredeira de São João. E logo entende a
situação: Alberto estava fazendo um pedido.
– Se você
está mesmo tão seguro, Sapo-Pinga, por que pede ajuda ao céu? – inquiriu
Leônidas.
– Não
estava pedindo nada pra mim. Eu estou seguro, mas “você” não está. Pedi àquela
estrela que carregasse o seu medo com ela, pra bem longe, e te fizesse um
menino quase tão corajoso quanto eu.
Embora
tocado pelo gesto do primo, de fazer uma prece por ele, Leônidas não pôde
deixar de observar o detalhe do “quase”. E comentou, segurando o riso:
– Quase quanto você, é?
– Ah,
Leozinho! Também não vou pedir pra você ser mais
do que eu, né?
Os dois
sorriem.
E
voltando a falar do seu plano, notaram que agora faziam isso com mais leveza.
Não demorou muito para que se esgotassem os quinze minutos dados por Rita e
Sofia, e os dois tiveram que se despedir do deslumbrante céu estrelado e da
deliciosa brisa vespertina que só as cidades do interior conservam, livres que
são do excesso de calor retido pelo asfalto e o concreto das metrópoles.
Leônidas
e Alberto se recolheram.
A bonita
casinha de adobe teve sua porta fechada e suas últimas lâmpadas apagadas. O
chão de piçarra da rua São Joaquim iria silenciar até o despontar da aurora,
quando os primeiros transeuntes do dia, de bicicleta, moto, carro ou a pés,
iriam produzir aquele gostoso barulhinho de chuva fina no telhado, ao passarem
sobre as milhares de pedrinhas marrons.
(Continua no próximo post. Até lá!!!)
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