UMA NOITE, UMA GAROTA
Aos fantasmas de
Plínio Marcos, Jack Kerouac, Caio Fernando Abreu,
Allen
Ginsberg e Torquato Neto – eternos assombradores do “bel-letrismo”.
E para meu querido e imortal “vida louca” – Cazuza.
PRÓLOGO
Há
dias em que o tédio da vida não pode ser quebrado nem mesmo pela companhia dos
melhores amigos, porque somos acometidos pela impressão de que até a força que
vem disso se desgastou, e não traz emoção.
A cidade vira um mundo em ruínas pelo qual queremos
apenas vagar sobre os escombros, sem nos importarmos com seus fantasmas
sedentos de libertação e paz. Não queremos ser a esperança de ninguém porque
nós mesmos já não temos esperança.
No entanto, se no meio dos escombros encontramos algo
intacto, compreendemos imediatamente que somos parte disso que encontramos,
porque apesar da dor estamos inteiros no meio dos cacos – e pertencemos a isso
tanto quanto isso nos pertence.
A fronteira entre o que somos e o que encontramos se
rompe nesses dias de sol noturno. O tédio enfim se dissolve, e alguma coisa em
nosso íntimo diz que ainda resta algo grandioso a ser revelado. E mesmo que por
um instante a gente vacile, o desejo de ir até o fim será sempre maior.
capítulo
1
Dina, o nome dela era Dina. Quer dizer,
o pseudônimo dela era Dina, porque o nome verdadeiro segundo ela me disse
ninguém sabia, nem o nome nem o endereço. Ela parecia muito na dela quando a
encontrei com o Frank na p2 (apesar do elogio que fez aos meus dentes, logo os
meus dentes de vampiro; daí já senti que ela era meio doida e fiquei
interessadíssimo) . Mas depois me convidou pra sentar do seu lado, e eu, do
fundo da minha esquisitice resisti um pouco. Então ela insistiu, aí eu cedi
segurando a minha onda pra não mostrar o prazer com que cedi. O Frank começou a
bater papo com um cara que apareceu e a nossa conversa ficou só entre eu e ela
– adorei isso. Foi logo me contando da vez que tomou um monte de comprimidos e
furou os pulsos. “Furei” ela disse, “e não cortei, é por isso que não ficou
marca”.
Eu tinha entregado pra ela, na hora que
cheguei, um exemplar de um conto meu, impresso em folheto e reproduzido em
xérox, e talvez por isso e também porque
comecei a mexer nos seus cadernos ela me mostrou uns poemas que escrevera,
mas só deixou eu ler um, quer dizer – ela leu. A gente continuou falando sobre
essa coisa de se matar e sobre outras coisas, até que ouvi a voz do Frank
dizendo “Vou ali galera. Volto já”. Mas só ouvi, nem olhei pra ele saindo com o
outro cara porque nesse exato momento ela estava sorrindo e a boca dela
sorrindo era exuberante. Perguntei se ela estava com o Frank, ela respondeu que
não. “Massa” – pensei logo.
– Tu fuma? – ela me perguntou.
– Cigarro?
– Não. Cotonete . Sabia que essa tua cara de santinho não me convence?
Um cara que escreve contos não pode ser tão lerdo assim. Tô falando de coisas
que quebram o gelo, cara.
– Baseado.
– Bingo!
– De vez em quando, mas geralmente é de carona. O Frank deve ter.
– Se não tinha agora ta na fartura. O outro cara lá é trafica. Mas é
vacilão, eu já disse pro Frank; qualquer hora vai se dar mal e ferrar todo
mundo que pega com ele. Mas deixa quieto, é melhor mesmo a gente ficar sem.
Ultimamente fico deprimida quando fumo.
Não soube o que pensar por alguns instantes.
Ela era uma garota linda e não era nem um pouco santa. Sei que isso é meio
sádico, mas pra mim esse era um detalhe que fazia dela uma ninfeta perfeita.
Involuntariamente comecei a fantasiar momentos de luxúria total entre a gente.
Cometi o descuido de deixar que ela percebesse os meus olhos abstraídos. Ela
sorriu.
–
Cê não é dessas coisas, né?
Passou a mão no meu rosto com uma
ternura meio sacana e meio maternal.
–
Ei, também não sou o cara mais careta do mundo
– me defendi logo. Mas foi pior, porque os olhos dela atingiram o apogeu
da ternura e eu sabia que aquilo era por me achar ingênuo, carinhosamente um
belo manezão.
–
Eu sei – ela disse recolhendo a mão e
reassumindo a expressão séria. Depois
falou:
–
Tá vendo aqueles malucos ali? – apontou para os hippies confeccionadores e
vendedores de bijuterias da praça - não são hippies de verdade, são
pseudo-hippies, são carinhas que quando a barra pesa pra valer voltam pra suas
casas e relaxam no sossego da família. Os hippies eram outra coisa...
–
Tinham mais atitude e eram mais conscientes – interrompi.
Ela me olhou novamente, mas dessa vez
sem aquela ternura piedosa e aborrecível. Me olhou, assim, me sacando.
–
A gente tem afinidades – falou como se
confessasse.
(continua)
Comentários