UMA NOITE, UMA GAROTA - post 4



Capítilo 4


A pele cor de canela, cabelo negro com corte redondo feito cabelo de índia , baixinha, calça jeans e tênis de pano, toda cheiinha sem ser gorda (exceto na opinião dela), umas frescurites na maquiagem reproduzindo cílios de felino nos cantos dos olhos  – era assim a garota que acabava de me deixar com cara de buceta na parada de ônibus.
Saí caminhando e no trajeto para a outra parada de ônibus, na praça Saraiva, repetia para mim mesmo que tinha valido a pena conhecê-la. “Talvez não tenha sido só uma aventura que não deu em nada” – pensava. Eu queria muito ter ficado com ela e não fiquei, mas foi muito bom ter passado o resto do dia com ela, foi ótimo. Foi sim. Só que meu orgulho tinha ficado meio ferido pela maneira como ela foi embora. Nem um beijo no rosto, nem um aperto de mãos, na verdade ela nem sequer olhou pra mim que fui tão atencioso com ela desde a hora em que nos encontramos, até mesmo quando ela veio com aquela baboseira psicológica de querer me analisar na lanchonete, até mesmo nessa hora eu fui atencioso, mas é foda, porque ela também tinha sido o tempo todo, e justamente no momento de ir embora resolve se mostrar tão grosseira e indiferente.
Passando em frente ao Palácio de Carnak (me lixando pro Palácio, pro governador, pros secretários e toda a corja administrativa, passando por ali com muito menos reverência do que quando passo pela Paissandu e recordo a história de grandes boêmios e suas façanhas em noites de luxúria, adultério, paixão, facada, garrafada, polícia, tiro, barra de ferro e mulheres com o vestido rasgado, ensangüentado pela fúria de um amante enciumado ou desforra de esposa que descobriu a verdade) sou acometido por um súbito presságio, paro e me volto, estou diante da São Benedito mais uma vez; sinto um ódio inexplicável pelo templo, entro numa piração que me faz acreditar que é culpa dele, do templo, o fato de Dina ter ido embora daquele jeito; e olho pro lado vendo com sentimento análogo o Palácio de Carnak e suponho um complô, uma conspiração dos dois edifícios, cada um com seu gênero de opulência e tirania me sacaneando, me metendo azar, e agora gozando da minha cara. Desejei ser um homem bomba, um não – dois. Explodiria ao mesmo tempo a paróquia e o palácio, mas aí levei em consideração o fato de morrer e nunca mais ter a chance de ver Dina de novo. Isso me apaziguou ao ponto de quase me levar a perdoar a inquisição e a ditadura, mas antes de chegar a isso me pus a caminhar novamente sabendo que precisava esquecer.
Finalmente a chuva começava a cair. Apressei o passo com medo de molhar os papéis na mochila – uns rascunhos de poemas e contos, pedaços de diários que nunca concluía e tentativas de crônicas que com certeza seriam amassadas e jogadas no lixo; só não queria que fossem destruídas assim, por acidente, sem que eu escolhesse a hora, capricho bobo de literato em fase de descoberta. Quase chegando na parada o negócio apertou, a chuva desabou com vontade e eu tive que dar um pique pra não me molhar feio. Foi aí que... ah, que merda... a uns dez metros da parada de ônibus, saltando por cima de uma lata de refrigerante (dá pra acreditar? uma lata de refrigerante!) pra não me molhar feio torci feio o tornozelo, me estabaquei no chão com um “ai caralho”, e em seguida foi um improviso frenético de palavrões e blasfêmias (uma lata de refrigerante! Teresina é mesmo uma cidade sem lixeira).
Só havia umas cinco pessoas na parada, ficaram me olhando talvez com uma mistura de piedade e desprezo por causa dos meus desaforos. Nossa!, meu pé doía como se tivesse sido arrancado, me sentei e soltei as tiras da papete, coloquei o pé sobre a coxa esquerda com dificuldade e fui massageando com cuidado (o cuidado que a gente só se toca de ter depois que se ferra). A chuva engrossou horrores, passaram dois ônibus da zona sul que levaram as pessoas da parada e eu fiquei sozinho. Não sei por que milagre a massagem sem técnica nenhuma surtiu efeito, amenizando bastante a dor; calcei de novo a papete e experimentei ficar em pé, senti uma alfinetada horrível mas logo transferi o peso para a perna esquerda, usando a direita só como acessório, e vi que assim era possível caminhar – com o cuidado de quem já se ferrou, é claro.
Foi aí que um relâmpago rasgou o céu como uma flecha de fogo disparada por um anjo furioso, produzindo um estrondo ensurdecedor ao cruzar o espaço e sugando toda a energia elétrica da cidade, a qual imergiu em trevas absolutas. Fiquei aturdido pelo susto e firmei o pé direito no chão, levando outra alfinetada de fazer chorar. Me recompondo do susto e da dor procurei a cadeira e voltei a me sentar. O que se seguiu foi uma festa de pequenos relâmpagos, menos hostis e com intervalo mais constante entre um e outro.
Nos clarões momentâneos que ocorriam notei uma silhueta que surgiu no início do gradeado do terminal e caminhava em direção à parada em que eu estava. Era estranho, porque chovia muito e a pessoa caminhava com a tranqüilidade de uma manhã de sol. Chegando na parada veio direto para mim, estacionando calmamente bem na minha frente e dizendo:
 – Alguma coisa me dizia que eu ainda ia te encontrar.
Nenhum discreto relâmpago para produzir um mínimo de luz, mas a silhueta e a voz não deixavam dúvida... Num misto de felicidade e horror balbuciei:
 – Dina!    


(continua)

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