UMA NOITE, UMA GAROTA - post 4
Capítilo 4
Saí caminhando e no
trajeto para a outra parada de ônibus, na praça Saraiva, repetia para mim mesmo
que tinha valido a pena conhecê-la. “Talvez não tenha sido só uma aventura que
não deu em nada” – pensava. Eu queria muito ter ficado com ela e não fiquei,
mas foi muito bom ter passado o resto do dia com ela, foi ótimo. Foi sim. Só
que meu orgulho tinha ficado meio ferido pela maneira como ela foi embora. Nem
um beijo no rosto, nem um aperto de mãos, na verdade ela nem sequer olhou pra
mim que fui tão atencioso com ela desde a hora em que nos encontramos, até
mesmo quando ela veio com aquela baboseira psicológica de querer me analisar na
lanchonete, até mesmo nessa hora eu fui atencioso, mas é foda, porque ela
também tinha sido o tempo todo, e justamente no momento de ir embora resolve se
mostrar tão grosseira e indiferente.
Passando em frente ao
Palácio de Carnak (me lixando pro Palácio, pro governador, pros secretários e
toda a corja administrativa, passando por ali com muito menos reverência do que
quando passo pela Paissandu e recordo a história de grandes boêmios e suas
façanhas em noites de luxúria, adultério, paixão, facada, garrafada, polícia,
tiro, barra de ferro e mulheres com o vestido rasgado, ensangüentado pela fúria
de um amante enciumado ou desforra de esposa que descobriu a verdade) sou
acometido por um súbito presságio, paro e me volto, estou diante da São
Benedito mais uma vez; sinto um ódio inexplicável pelo templo, entro numa
piração que me faz acreditar que é culpa dele, do templo, o fato de Dina ter
ido embora daquele jeito; e olho pro lado vendo com sentimento análogo o
Palácio de Carnak e suponho um complô, uma conspiração dos dois edifícios, cada
um com seu gênero de opulência e tirania me sacaneando, me metendo azar, e
agora gozando da minha cara. Desejei ser um homem bomba, um não – dois.
Explodiria ao mesmo tempo a paróquia e o palácio, mas aí levei em consideração
o fato de morrer e nunca mais ter a chance de ver Dina de novo. Isso me
apaziguou ao ponto de quase me levar a perdoar a inquisição e a ditadura, mas
antes de chegar a isso me pus a caminhar novamente sabendo que precisava
esquecer.
Finalmente a chuva
começava a cair. Apressei o passo com medo de molhar os papéis na mochila – uns
rascunhos de poemas e contos, pedaços de diários que nunca concluía e
tentativas de crônicas que com certeza seriam amassadas e jogadas no lixo; só
não queria que fossem destruídas assim, por acidente, sem que eu escolhesse a
hora, capricho bobo de literato em fase de descoberta. Quase chegando na parada
o negócio apertou, a chuva desabou com vontade e eu tive que dar um pique pra
não me molhar feio. Foi aí que... ah, que merda... a uns dez metros da parada
de ônibus, saltando por cima de uma lata de refrigerante (dá pra acreditar? uma
lata de refrigerante!) pra não me molhar feio torci feio o tornozelo, me
estabaquei no chão com um “ai caralho”, e em seguida foi um improviso frenético
de palavrões e blasfêmias (uma lata de refrigerante! Teresina é mesmo uma
cidade sem lixeira).
Só havia umas cinco
pessoas na parada, ficaram me olhando talvez com uma mistura de piedade e
desprezo por causa dos meus desaforos. Nossa!, meu pé doía como se tivesse sido
arrancado, me sentei e soltei as tiras da papete, coloquei o pé sobre a coxa
esquerda com dificuldade e fui massageando com cuidado (o cuidado que a gente
só se toca de ter depois que se ferra). A chuva engrossou horrores, passaram
dois ônibus da zona sul que levaram as pessoas da parada e eu fiquei sozinho.
Não sei por que milagre a massagem sem técnica nenhuma surtiu efeito,
amenizando bastante a dor; calcei de novo a papete e experimentei ficar em pé,
senti uma alfinetada horrível mas logo transferi o peso para a perna esquerda,
usando a direita só como acessório, e vi que assim era possível caminhar – com
o cuidado de quem já se ferrou, é claro.
Foi aí que um relâmpago
rasgou o céu como uma flecha de fogo disparada por um anjo furioso, produzindo
um estrondo ensurdecedor ao cruzar o espaço e sugando toda a energia elétrica
da cidade, a qual imergiu em trevas absolutas. Fiquei aturdido pelo susto e
firmei o pé direito no chão, levando outra alfinetada de fazer chorar. Me
recompondo do susto e da dor procurei a cadeira e voltei a me sentar. O que se
seguiu foi uma festa de pequenos relâmpagos, menos hostis e com intervalo mais
constante entre um e outro.
Nos clarões momentâneos
que ocorriam notei uma silhueta que surgiu no início do gradeado do terminal e
caminhava em direção à parada em que eu estava. Era estranho, porque chovia
muito e a pessoa caminhava com a tranqüilidade de uma manhã de sol. Chegando na
parada veio direto para mim, estacionando calmamente bem na minha frente e
dizendo:
– Alguma coisa me dizia que eu ainda ia te
encontrar.
Nenhum discreto relâmpago
para produzir um mínimo de luz, mas a silhueta e a voz não deixavam dúvida...
Num misto de felicidade e horror balbuciei:
– Dina!
(continua)
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