UMA NOITE, UMA GAROTA - post 2
Capítulo 2
Nos calamos e ficamos
assim um tempão. Mas não incomunicáveis, havia uma espécie de onda de linguagem
vibrando entre a gente até mesmo quando a gente se calava. Era estranho, porque
embora eu mal conhecesse aquela garota eu sentia como se a gente estivesse
enroscado um no outro o tempo todo, mesmo quando não havia contato sequer de
olhar nós estávamos lá, completamente emaranhados um na alma do outro de um
jeito que não dava mais pra desembaraçar. Tanto é que de dentro dessa forma de
comunicação eu senti que ela queria sair, queria ou precisava sair dali, e
bastou eu sentir isso pra que a gente se olhasse de novo, simultaneamente.
– E aí? – perguntei.
– Tá a fim de ir comigo até a Casa da Cultura?
Tenho ensaio no coral às 7 – ela disse.
Mas ainda iam dar seis
horas, o sol estava começando a se pôr sem que a gente o visse dourando as
águas do Parnaíba, por causa das lojas e prédios antigos reformados a nossa
frente. Porém ela tinha me feito um convite sincero, eu havia testemunhado
antecipadamente o seu desejo de sair dali, de deixar a p2 com seus
pseudo-hippies, com o 4 de Setembro resmungando a história dos seus incêndios e
meio enciumado da nova casa no Dirceu, com o imortal Cine Rex feito um deus
aleijado e displicente, com a Central de Artesanato Mestre Dezinho agora mais
convidativa, mais visitada, com as bancas de revistas, com o maconhódromo
reservado naquela tarde só para nós dois pela vontade grandiosa e impenetrável
do universo. Confesso que fui tentado a fazer um charme qualquer, sabe como é,
só pra dar uma valorizada, mas tive medo de colar e ficar feio voltar atrás. E
além disso não havia necessidade daquele tipo de joguinho entre nós dois, eu
sentia que não. Aceitei o convite dela, a gente saiu caminhando devagar sem se
lembrar mais do Frank que tinha saído dizendo “volto já”.
Na Casa da Cultura, como
ainda era cedo, a gente foi se sentar num banco perto do bebedouro, do outro
lado do pátio, e ficamos conversando um tempão antes dela entrar pro ensaio.
Perguntou se eu queria esperar ela sair às 8, eu fiquei indeciso, aí ela pediu (pois é, ela pediu de novo, duas vezes
na mesma tarde ela pediu) e eu disse “talvez” mas com a certeza íntima de que
ia esperar. Tava rolando um filme do Charlie Chaplin na sala de cinema, era um
festival sobre ele que ia aquela semana toda, resolvi assistir enquanto
chegavam as oito horas, e recordando agora o quanto não estava nem aí pro
Chaplin naquela tarde chego a me sentir um bárbaro, um ser insensível e quase
hostil a tudo quanto fosse belo e não fosse ela, a Dina, ela que parecia mesmo
ter absorvido e sintetizado a beleza de tudo que me cercava, como uma vampira
que se alimentasse de cores deixando o resto do mundo em preto-e-branco (da cor
dos filmes do Chaplin - nossa!, que
horror!).
Entrei na sala e para
minha surpresa notei que o Frank estava lá com o outro cara e uma galera deles.
Resolvi ficar na última fila, não queria que eles me vissem. Acomodei-me na
cadeira e tentei me concentrar no filme. Era Tempos Modernos naquela noite. Com os olhos na tela e o pensamento
inteiro em Dina estava difícil assistir o filme, por uns instantes até quase
consegui, quase... só quase. O fato é que o tempo passou rápido.
Antes do filme acabar
olhei a hora no celular, já eram oito. Me veio um medo súbito de que ela já
tivesse ido embora, saí da sala de cinema e perguntei pro guarda se o pessoal
do coral já tinha saído, ele respondeu que sim mas talvez ainda tivesse alguém
lá por dentro. Fui conferir. Eu a
encontrei às gargalhadas com um cara franzino e bastante engraçado. Quando me
viu ela disse – “Você veio, que bom”. Ficamos os três conversando um monte de
bobagens, contando histórias divertidas cheias de peripécias sobre nós mesmos,
até que o cara foi embora. A Casa ia fechar dali a pouco e nós também saímos.
(continua)
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