Jenipapo: riacho irrigado com sangue, sonhos, dores, amores, esperanças
Por: Robson Lima[1]
(Prof. Dr. Raimundo Lima)
Não é a primeira vez que o
Eduardo promove prazeres aos seus leitores...
Pelo menos para mim, começou
com a saga de Crispim[2].
A trágica lenda, um dos símbolos folclóricos da capital do Piauí, ficou
recheada de aventuras, romances e muito mistério...
Mas o meu relato aqui não se
trata do Cabeça de Cuia, apesar de também conter monstruosidades,
insanidades...
Mas para não perder esse mote,
as histórias até que se conectam... pelo princípio da vida... para alguns a terra,
para outros a água... para dirimir qualquer contenda, digo que a água líquida
não se mantém suspensa no ar, ela se apoia na terra... Portanto, a água, que se
apoia na terra, constitui-se como o princípio da vida... e, neste caso, a base
dessas histórias...
As águas confluentes dos rios
Poti e Parnaíba (re)fluem e envolvem a saga do Crispim pescador na cidade
verde[3]...
Já a história aqui contada por
Eduardo Prazeres também ocorre nas terras piauienses, mas nas águas
do rio Jenipapo, em Campo Maior.
Foi lá que nasceu um
novo homem, viajante dos tempos. E que morreram muitos anônimos,
tornando rubra aquelas parcas águas, evaporadas pelo calor escaldante dos
sertões e das periódicas estiagens.
Um historiador dos sertões[4],
chegou a dizer que o Jenipapo é um riacho irrigado com sangue da esperança. A
tonalidade rubra do sangue era única. Mas e os corpos de onde espichavam esse
líquido vital, possuíam as mesmas formas e cores? E o que dizer de suas mentes?
O que esperavam? Será mesmo que um grito fictício de um príncipe, acastelado
nas cortes fluminenses, bradando por independência, estaria sendo ouvido em
terras piauienses?
Na historiografia tradicional
positivista e na memória coletiva nacional, cristalizou-se a ideia de que o 7
de setembro simboliza o corte dos laços entre Brasil e Portugal. Nessa
visão simplista e maniqueísta, o lado do bem tupiniquim se libertaria
dos grilhões maldosos dos lusos. Nesse sentido, teria bastado o grito do
Ipiranga.
Mas as renovações de uma história
nova apontaram outras representações daquele passado dito glorioso. Em
várias partes dessa terra de pindorama houve conflitos armados. Muito sangue
foi derramado, antes que as gentes de cá pudessem chamar essa terra de Brasil.
Entre essas batalhas, está a
do Jenipapo, na província do Piauí, que contribuiu decisivamente para que o
norte da América Portuguesa não continuasse ligado ao Império Português,
como ansiava o El Rei Dom João VI.
Na narrativa factual desse
confronto entre lusos e brasileiros, ocorrido em 13 de março de 1823, o que se
descreve é um massacre de rebeldes, pelas forças legalistas. Quanto ao fato em
si, não há o que questionar. Mas o olhar arguto dos historiadores historionovistas,
analisando os sentidos desse fato histórico, percebeu um conflito a lá Batalha
das Termópilas, entre persas e espartanos. Os 300 de esparta eram
inferiores em número ao exército de Xerxes. Essa desigualdade numérica era
compensada pela motivação, pelo brio. Enquanto espartanos e aliados estavam
defendendo suas cidades, lutando contra invasores, os comandantes persas
recorriam a chicotes para obrigar suas tropas desmotivadas a lutarem. Apesar da
derrota, os espartanos enfraqueceram o exército persa. Assim também ocorreu no
confronto do Jenipapo, as tropas portuguesas lideradas pelo Major Fidié ficaram
enfraquecidas, não conseguiram retornar à Oeiras, capital da província do
Piauí. E, meses depois, esse comandante português foi preso, dando por fim o
projeto luso de manter, pelo menos, o norte do Brasil, como colônia do Império
Português.
Cabe ressaltar que na Batalha
das Termópilas, nos pergaminhos de Clio, ficaram registrados para a
posteridade, apenas os nomes de Leônidas, de Xerxes e de outros comandantes
masculinos, ricos e brancos. Na Batalha do Jenipapo não foi diferente. Os
registros de Abdias Neves[5],
de Monsenhor Chaves[6],
de Odilon Nunes[7],
entre outros, dão conta apenas de militares, como o Major João José da Cunha Fidié,
o Capitão Luís Rodrigues Chaves e de outras autoridades, como o literato e
fazendeiro Leonardo de Carvalho Castelo Branco, o Juiz de Fora Dr. João Cândido
de Deus e Silva, e o rico proprietário de terras da região, que financiou o
movimento rebelde, Simplício Dias da Silva.
Em meio a esses nomes e sobrenomes
pomposos onde estão os registros que nomeiam individualmente os vaqueiros, os
roceiros, os artesãos, os escravizados? Onde estão as referências às mulheres,
aos indígenas? Por que essas gentes são sintetizadas e homogeneizadas no termo
“povo”? Por que a historiografia tradicional reitera a ideia de que todos os
rebeldes estariam imbuídos em uma “cegueira patriótica”? Todos aqueles rebeldes
(brancos, negros, livres, escravos, ricos, pobres, letrados, analfabetos)
estariam de fato lutando pelos mesmos interesses? Quais eram as motivações
subjetivas, as “causas espirituais” que conduziam as pessoas ao ato extremo de
matar ou morrer?
A personagem onipresente
Sávia, deste romance histórico, reflete sobre algumas dessas questões:
“O Homem mata pelo poder – ela
pensava. E, acima de tudo, pela afirmação do poder. Mas, o que é, de fato, a
sensação de poder, para que o Homem seja capaz de matar por ela? O Homem também
mata em nome da liberdade e até em nome de Deus. Mas como se constrói o
significado da liberdade e a imagem de Deus, pelos quais vale a pena matar e
morrer? Que condições fazem da guerra a única alternativa para se chegar à
solução de uma causa e como o Homem se relaciona com essa alternativa, em
diferentes épocas?” (p. 20)
Como você pode perceber, caro
leitor(a), são muitas questões a se responder. Adianto que o jovem literato
teresinense, Eduardo Prazeres, se propõe a responder algumas dessas questões. A
busca pelas respostas se deu nos arquivos públicos, nas bibliotecas, analisando
minuciosamente documentos oitocentistas e estudos historiográficos sobre a
participação da então Província do Piauí, nas lutas pela independência do
Brasil.
As motivações para essa
pesquisa, arrisco dizer, sem mesmo consultar o autor, foram traçadas no dia do
seu nascimento. Não, ele não nasceu em 13 de março de 1823. Mas em 31 de março
de 1977, em Teresina, capital do Piauí. O mês é o mesmo e, se tu inverteres o
31, dá 13. É, pode ser que eu esteja forçando a barra, com a coincidência do 13
invertido... mas e o que dizer do fato dele ter morado em Campo Maior-PI, no
período de 1995 a 2000? E o que dizer do fato de algumas décadas depois do
nascimento do autor, ele começar a cursar História, na Universidade Estadual do
Piauí-UESPI e participar como ator, no espetáculo teatral “A Batalha do
Jenipapo”, realizado todos os anos no monumento aos heróis do Jenipapo, na
cidade de Campo Maior-PI? E o que dizer do fato da protagonista deste romance,
ser estudante de História e ser nomeada como Sávia do Nascimento Fonseca
(o autor foi batizado como Eduardo Prazeres Fonseca)? Todos esses
indícios são mera coincidência?
É, dizem por aí que toda obra
artística é autobiográfica. Será?!
Cabe ressaltar que a pesquisa
histórica, do aspirante a historiador Eduardo Prazeres, não resulta aqui em um
texto científico, de seu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso). Sua escrita se
pauta naquilo que ele tem mais afinidade: a Literatura. Deixo que o próprio
autor fale de sua relação como literato-acadêmico e como entende sua obra:
“A meu ver, o termo
“romance histórico” é redundante, porque uma narrativa, por mais surreal ou
dadaísta que seja, não se constrói sem referenciais de tempo e de espaço, ainda
que seja subvertendo-os. Portanto, não concebo uma narrativa que não seja
histórica. [...] De um modo geral, o texto acadêmico-científico é um discurso
objetivo sobre as coisas, enquanto o texto literário é um discurso simbólico.
Assim, tanto pela minha maior afinidade natural com a linguagem simbólica como
por acreditar mais no poder do símbolo e da metáfora que no discurso objetivo,
escrevo narrativas de ficção. Mesmo reconhecendo o texto científico como
necessário – e a despeito de qualquer crítica que esta afirmação possa me
render – minha plataforma de produção historiográfica é o romance”. (p. 15)
Portanto, redundante ou não,
esse “romance histórico” de Eduardo Prazeres, como o próprio título informa,
narra “Um dia em 1823”, tendo como pano de fundo os acontecimentos da Batalha
do Jenipapo e, na sequência da designação da obra, faz uma pergunta que
constitui o fio condutor de toda narrativa: “Se voltasse no tempo, você mudaria
tudo?”
Adianto um spoiler, como
resposta a essa pergunta: o autor retira a mera síntese e homogeneização dada
ao “povo” e a valoração exacerbada aos “grandes” homens, brancos, letrados,
ricos. Aqui você vai conhecer os nomes, as histórias, os sentimentos de pessoas
simples... de irmãos, de filhos, de esposas, de maridos, de afilhados, de
mulheres, de escravizados e até de amigos de quatro patas...
Portanto, te convido agora a
conhecer as personagens que vão te acompanhar em cada página dessa narrativa
fantástica, te fazendo sorrir, chorar, ranger os dentes e se apaixonar...
Se conheceu e se emocionou com
a Baleia das Vidas Secas, do Graciliano Ramos, também serás cativado pela
fidelidade da cadela Sucuri, sempre pronta a defender e amar os seus com
rugidos, mordidas e balançar de cauda.
Faço-te um alerta, se por
acaso cochilares, em algum momento, na leitura dessas mais de 400 páginas,
serás surpreendido pelo latido descontente de uma fiel amiga...
Nos escritos sagrados dos
cristãos, o Lázaro bíblico ressuscitou, por intermédio de Jesus, depois de
alguns dias sepultado. Por onde esteve nesses dias? O que fez, o que pensou?
Matéria e espírito continuaram juntos, repousando na catacumba ou se
desconectaram, aproveitando o momento para pairar nos Jardins do Éden ou nos Campos
Elísios?
A resposta a essas perguntas
talvez encontre na leitura desta obra, pois encontrará um velho Lázaro,
amigo do jovem Renan.
Eles serão protagonistas de
muitas aventuras, de muitas experiências que vão além de nossa vã filosofia.
Portanto, caro leitor, se és afeito a uma literatura fantástica, cheia de
mistérios, aventuras, tragédias e romance, terás muitos prazeres, em ler
esses escritos de Eduardo.
O baiano Veloso[8],
chegando a primeira vez em Sampa, achou feio o que não era espelho. Ele teve um
difícil começo, afastando o que não conhecia, porque sua mente estava apavorada
com o que ainda não era velho.
Na história de Eduardo
Prazeres encontrarás um espelho nas águas do rio Jenipapo, refletindo Narcisos,
Renan’s, Sávia’s, Lázaros, Osmar’s, Raimundos, Jerônimos, Felícios,
Natividades, Gentis, Amálias...
Perceberás a impaciência
diante do novo, do desconhecido, do que não é espelho do mesmo tempo e espaço.
Impaciência misturada com
ciúmes, com valentia, com rancor, com brio, com cegueira patriótica...
Ao mesmo tempo, na contramão
dessa correnteza de sentimentos passionais patriarcalizados, encontrarás a
generosidade e fraternidade incondicional de um jovem adolescente, que bem
poderia estar estudando na escola do professor Xavier[9]...
encontrarás a gentileza personificada em um ex-quilombola, que honra o nome de
seu sinhozinho abolicionista... encontrarás a Natividade celebrando não o
nascimento, mas a chegada de um novo filho, vindo de outros tempos, de outras
dimensões... encontrarás acima de tudo, o amor, na sua forma mais pura...
Impossível não amar, Amália...
a flor de mandacaru, que se protege com seus espinhos, em alturas inacessíveis
a rudezas de machos agrestes oitocentistas... que exibe suas pétalas brancas de
pureza primaveril ao romantismo que transcende os tempos, os corpos, a
racionalidade cartesiana.
Se chegou até aqui, está
pronto para passar um dia em 1823 e, poderá decidir se vai ou não mudar
o fluxo da história...
Uma última observação, vá
pelas margens do rio Jenipapo, lá encontrarás Clio e Calíope, elas te mostrarão
a composição dessas águas, recheadas de sangue, sonhos, dores, amores,
esperanças...
[1] Robson Lima é o pseudônimo de Raimundo
Nonato Lima dos Santos. Doutor em História pela UFPE. Professor do curso de
História e do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da UFPI. Atua
ainda como historiador, ator, diretor teatral, dramaturgo e cronista. E-mail:
raimundo.robsonlima25@gmail.com
[2] A trilogia sobre a lenda de Crispim
pescador, o Cabeça de Cuia. PRAZERES, Eduardo. Crispim e a sétima virgem.
Teresina: Fundação Quixote / SIEC, 2013.; PRAZERES, Eduardo. Crispim e a
sétima virgem. Teresina: Livraria Nova Aliança Editora, 2017. (com
comentários dos leitores).; PRAZERES, Eduardo. A fortaleza de Crispim.
Teresina: Editora e Livraria Nova Aliança / SIEC, 2017. (Trilogia A lenda de
Crispim, 2); PRAZERES, Eduardo. Para sempre Crispim. São Paulo: Bok2 /
SIEC, 2019. (Trilogia A lenda de Crispim, 3).
[3] “Cidade Verde”, foi o cognome dado a
Teresina pelo escritor maranhense Coelho Neto, em virtude de seus poucos anos
de existência (foi fundada em 1852) e pela presença de muitas árvores por toda
a urbe.
[4] Trata-se do professor e historiador
Antônio Fonseca dos Santos Neto, com a obra FONSECA NETO, Antônio. Jenipapo:
riacho irrigado com o sangue da esperança. Teresina: CCOM / Governo do Estado
do Piauí, 2010.
[5][5] NEVES, Abdias. A guerra do Fidié.
Rio de Janeiro: Artenova, 1974.
[6] CHAVES, Mons. Joaquim. O Piauí nas
lutas da independência do Brasil. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor
Chaves, 1993.
[7] NUNES, Odilon. Pesquisas para a
História do Piauí: Vol. 2. Teresina: FUNDAPI, 2007.
[8] Referência a Caetano Veloso e à música
“Sampa”. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/41670/>. Acesso em: 11 jan. 2023.
[9] Aqui faço referência a Charles Francis Xavier, conhecido como Professor X, um personagem de quadrinhos da série X-Men, criado por Stan Lee e Jack Kirby. Ele é diretor de uma escola de superdotados, onde abriga mutantes e forma os X-Men.
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