Prólogo do livro PARA SEMPRE CRISPIM
ILHA DE SANTA MARIA – ARQUIPÉLAGO DOS AÇORES
Janeiro
de 2011
Jeremias voltava
de um banho numa fonte termal. Era um simpatizante da geomedicina e cultor das
propriedades curativas das águas das montanhas vulcânicas, ricas em titânio,
sílica e alumínio, sais minerais que auxiliavam até mesmo no rejuvenescimento.
Caminhava e conversava relaxadamente ao lado de Estela, sua esposa, por uma
vereda na campina, bordeada de ambos os lados por jardins floridos, quando
sentiu que o véu da realidade oscilou.
– Querido, você está bem? – Estela
notou a mudança no semblante do marido, que estacou de modo repentino.
No entanto, a voz da esposa chegou
aos ouvidos de Jeremias já vinda de um lugar muito distante. Toda a paisagem em
volta tinha mudado e se tornado deserta, não havendo mais nenhuma presença
humana ali, a não ser a do próprio mago.
As plantações de vinha e toda a
terra cultivada desapareceram, assim como todas as construções e todos os
vestígios de civilização. Tudo era fauna e flora. O rumor das ondas quebrando
na praia, a menos de meio quilômetro dali, era o som mais nítido que se ouvia.
A ilha vulcânica voltara ao seu aspecto natural da pré-colonização. E Jeremias
era o único observador consciente do fenômeno.
De súbito, um tremor no chão pareceu
anunciar algo pelo que os açorianos, durante séculos, clamaram aos céus para
que não tornasse a acontecer – o novo despertar de um dos seus vulcões.
O tremor se intensificou. Incrédulo,
Jeremias reconheceu que a erupção estava mesmo acontecendo. Esquadrinhou a ilha
em todas as direções, em busca de Estela, mas não a via em lugar algum.
–
Estela! Querida! – ele gritou, angustiado.
Nenhuma
resposta.
Espero que tenha encontrado um
lugar seguro.
E quando ele já buscava localizar
algum esconderijo para si também, desequilibrou-se ao tentar correr durante um
novo e mais intenso solavanco, e caiu.
Porém, ao cair, Jeremias percebeu
que seu corpo, em vez de ir de encontro ao chão, como seria natural, foi sugado
para cima. Um magnetismo infinitamente poderoso o sugou no ar, por sobre as
copas das árvores, por sobre as colinas, e continuou a puxá-lo para cima num
movimento ininterrupto.
À medida que se distanciava do solo,
Jeremias via o chão da ilha começando a sacudir como um tapete, e
desesperava-se tanto pela altitude vertiginosa que estava galgando, solto no
ar, como pela perspectiva de ser devolvido para aquele solo em ebulição.
O inacreditável movimento ascendente
de seu corpo, de repente, tornou-se ainda mais brutal, lançando-o pelos ares
numa linha horizontal, cuja vertigem do deslocamento brusco impediu que
Jeremias identificasse a sua localização por alguns instantes. De olhos
fechados agora, sem ter mais certeza se estava sendo sugado ou arremessado, ele
apenas aguardou a iminente colisão com qualquer coisa sólida que, certamente, o
esmagaria.
Mas para sua surpresa, tão repentino
como lhe fora tirado, o apoio de seus pés lhe foi devolvido, sem nenhum impacto
mortal e até mesmo com suavidade.
Jeremias abriu os olhos, e
reconheceu imediatamente o local onde se encontrava agora. Inexplicavelmente,
havia se deslocado sobre as águas do oceano e saltado de uma ilha para outra,
entre as nove ilhas do arquipélago. Deixara Santa Maria, e se encontrava agora
no cume da Montanha do Pico, na Ilha do Pico, a 2.350 metros de altitude.
A vista, dali, era tão deslumbrante
quanto assustadora. Principalmente porque, como Jeremias compreendeu de
imediato, uma espécie de fenda no tempo havia se aberto, e o que os olhos do
mago contemplavam era o ambiente natural anterior à ocupação humana nos Açores.
Lá embaixo, ao redor da gigantesca montanha, a terra tremia e cuspia fogo, com
a lava incandescente escorrendo de encontro às águas do mar, que a resfriava e
dava início ao processo de formação das Farjãs, as planícies magmáticas, mais
comuns na ilha de São Jorge.
O continente europeu ficava a 1.600
quilômetros, e tudo que a visão de Jeremias alcançava, além das ilhas
açorianos, eram as águas límpidas e desertas do Atlântico Norte.
Um estrondo poderoso encheu todo o
ar, e Jeremias concluiu que, naquele exato momento, as três placas tectônicas
sobre as quais estavam situadas as nove ilhas, tinham acabado de se mover
simultaneamente. E a sequência de crateras abertas que começaram a expelir
lava, em explosões cada vez mais violentas, levou Jeremias a acreditar que, nos
próximos minutos, os quase dois mil vulcões do arquipélago entrariam em
erupção.
O mago buscava em vão aplacar o seu
assombro, e se perguntava se, por algum motivo, estava vivendo a experiência
retroativa do lendário dia triunfal do vulcão Capelinhos, que em 1958, antes de
desaparecer no fundo do mar, produziu 450 terremotos numa única noite, na ilha
do Faial.
Mas
esta é a ilha do Pico – pensou Jeremias. E eu não posso estar na década de 1950, por que... Ainda não existem
habitantes humanos aqui.
Por vários minutos, imerso na fenda
temporal e se equilibrando no chão instável do topo da Montanha do Pico,
Jeremias testemunhou, numa sequência confusa e provavelmente irreal, as origens
geológicas do Arquipélago dos Açores.
Numa linha do tempo mais ou menos
aleatória, ele viu o nascimento e o adormecer de dezenas de vulcões. Viu os
abalos sísmicos moldarem o relevo da ilha onde estava e das ilhas adjacentes.
De repente, o tempo mudou, o céu
escureceu, disparos elétricos cruzaram o espaço e atingiram em cheio pedras
suspensas que rolaram montanha abaixo. Começou a chover fortemente, e a pele de
Jeremias se enregelou com o sopro frio do topo da montanha. Relâmpagos cada vez
mais fortes ribombaram por todos os lados, e o mundo inteiro imergiu no caos da
violenta tempestade.
Uma voz remota ressoou pelos ares.
Vinha de muito, muito longe, e dizia um nome. Sim, o seu nome. Jeremias! – dizia aquela voz vinda de um
mundo longínquo, mas que era poderosa o suficiente para alcançá-lo ali, no topo
daquela montanha deserta, no princípio dos tempos, para onde um lapso de
consciência cósmica o havia arrastado.
Jeremias!
Meu amor, abra os olhos!
– Jeremias! Está tudo bem, querido! Amor, sou eu.
O véu da realidade oscilou outra
vez, e Jeremias estava de volta à estradinha bordeada por jardins floridos, com
Estela parada à sua frente.
Ele estava de olhos abertos. Mas
sabia que “abra os olhos” era a linguagem utilizada por ele e Estela para dizer
“volte para a realidade objetiva”, ou ainda “acorde”, durante um transe vivido
por qualquer um dos dois, que tinham como dom comum a Visão.
Estela o amparou, enquanto ele
cambaleava na direção de um banquinho de pedra, à margem da estrada deserta.
Sentou-se no banco, ainda ofegante, e tomou alguns minutos para recuperar o
ritmo da respiração.
– Querida – ele disse, assim que se
sentiu em condições de falar novamente –, tive uma das visões mais intensas da
minha vida.
Contou, então, para a esposa, o que
tinha visto e tudo que tinha sentido durante a visão.
Estela ouviu em silêncio,
refletindo.
Quando Jeremias concluiu sua
narração, ela pensou por mais alguns instantes, e por fim, ela falou:
– Foi uma visão de caráter mais
simbólico do que ilustrativo. Na verdade, o universo lhe deu um aviso, através
de uma metáfora do que está por vir. Querido, estamos às portas de uma nova
viagem ao Brasil. Dessa vez, porém, para realizar algo definitivo. Você
encontrou a solução decisiva para o caso do jovem Crispim, e isso, na sua
trajetória pessoal, representa um tipo de acerto de contas. Com Crispim... E
com você mesmo. Você irá viver um reencontro com suas origens. E esse
reencontro, apesar dos nossos esforços, não será totalmente pacífico. Ele será
turbulento, como o despertar dos vulcões. Apesar da minha companhia, de algum
modo você estará sozinho. Em algum momento, terá que se sentir desamparado e
enfrentar o caos germinado no passado. Mas lembre-se: assim como as erupções
vulcânicas do passado deram origem a este arquipélago, um verdadeiro paraíso de
belíssimas ilhas, as turbulências do reencontro com o seu passado pessoal não
estarão lá para destruí-lo, mas sim para transformá-lo, para vivificá-lo e
ajudá-lo a dar um passo a frente no caminho da evolução do seu espírito.
As palavras de Estela encerravam um
profundo sentido de verdade para Jeremias. Ele sabia que a esposa, mais do que
qualquer pessoa na face da Terra, estava inteiramente apta a interpretar as
suas visões. Como bruxa, Estela sempre havia buscado com afinco a clareza das
revelações do seu dom, que ambos compartilhavam desde quando ele se manifestou
pela primeira vez, ainda na juventude. Muitas visões que Jeremias nem sequer
chegara a compreender, Estela havia interpretado com precisão impecável.
E naquele caso, em particular,
Estela apenas oferecia sua valiosa confirmação para a interpretação que
Jeremias fazia daquilo que o seu dom acabava de lhe revelar, que era exatamente
a mesma da esposa.
Recuperado por completo da imersão
emocional causada pela experiência extrassensorial, sorrindo afavelmente,
Jeremias tomou a mão da esposa e a acariciou entre as suas.
– Quando chegar a hora de me sentir
desamparado, eu irei buscar consolo na lembrança de que você existe e faz parte
de tudo que eu sou – disse o mago.
– E eu estarei lá, querido. Seja
como for, eu estarei lá.
O casal de magos troca um abraço
afetuoso.
Em seguida se levantam, e voltam a
caminhar pela vereda sossegada rumo ao seu chalé, entre a praia e as
montanhas.
Estou a caminho, Crispim – pensou Jeremias. É chegada a hora de ajustar contas com você... E com todo o nosso passado.
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