IDENTIDADE E AUTORRECONHECIMENTO: UM DESAFIO ANTROPOLÓGICO



Por: Eduardo Prazeres
*Escritor e Graduando em História pela Universidade Estadual do Piauí.




É bastante previsível a atitude de um indivíduo que, deslocando-se do seu ambiente nativo e se expondo ao contato direto com outra cultura, pela sua falta de esclarecimento quanto ao que é etnocentrismo, ou ainda, por puro e natural preconceito, viva o estranhamento e até mesmo a rejeição dessa outra cultura, em alguns aspectos ou em sua totalidade. Mas, o que dizer quando esse estranhamento ou essa rejeição ocorrem com relação à estrutura social interna que deveria ser aceita pelo indivíduo como a sua própria cultura? O que leva o indivíduo a esse não reconhecimento da estrutura cultural [ou aspectos específicos dessa estrutura] que lhe é oferecida [imposta?] como sua?
As respostas a essas questões podem ser múltiplas. A começar pela desinformação do próprio indivíduo quanto a valores culturais e ainda pelo seu encantamento, como resultado da cultura de massa e das influências midiáticas, por aspectos culturais importados, que ele considera mais atrativos e/ou mais importantes que os seus. Todavia, uma outra resposta, de  conotações um tanto estranhas a princípio, também é possível. E as conotações estranhas dessa resposta se destacam à medida que se relacionam com a construção do senso crítico e do gosto estético particulares do indivíduo.
Assim, para expor com maior clareza a questão, abrindo mão de uma escrita impessoal, alegadamente mais neutra e imparcial [doce utopia de quem expressa qualquer pensamento], assumo agora o risco certamente antiacadêmico de falar em primeira pessoa, salvaguardado pela minha honestidade de deixar claro que este se trata de um texto de opinião, e não acadêmico. Faço isso por um motivo tão simples quanto [para o leitor, talvez] espantoso: o referido sujeito não identificado com determinados aspectos da própria cultura, mencionado nos dois parágrafos anteriores, sou eu. Admitamos e reforcemos, sim, a presença do fator honestidade. Afinal, dizer o que estou dizendo aqui é dar a cara a tapa. E talvez até, mais ainda, a tabefes e murros.
Dito isto, respiremos, deixemos passar o choque e adiemos o espancamento do modesto mas sincero autor. Agradeço de todo o coração àqueles que optarem por praticar a dádiva do perdão e, ao me encontrarem por aí, me deixem voltar sem hematomas para as minhas dívidas, para a minha esposa e para a gata Clotilde, que recentemente apareceu do nada e cismou em ser nossa agregada. Passemos ao que interessa.
Embora num estágio ainda muito inicial dos meus estudos acadêmicos [segundo período da graduação em História], arrisco considerar-me munido de sensibilidade e esclarecimento suficientes para entender que os aspectos culturais que definem o Brasil hoje são resultantes de todo um processo social, econômico e político, e, portanto, construtos inevitáveis do próprio processo histórico. Assim, quando se diz, por exemplo, que o Brasil é o país do futebol, ou o país do carnaval, não é à toa que se diz. Nem foi da noite para o dia que se construíram essas imagens como representações do que se pode chamar de cultura brasileira. Isso, todos compreendemos e aceitamos como fato, de um modo geral, com relativa facilidade. No entanto, pergunto: e quando se diz, na imprensa internacional, que o Brasil é, por exemplo, o país do turismo sexual? Aceitamos com a mesma serenidade? Sentimo-nos ofendidos, indignados e até caluniados? Somos capazes de utilizar para a análise dessa imagem depreciativa da nossa terra os mesmos conceitos que utilizamos para entender como nos tornamos conhecidos como o país do futebol e do carnaval? Ou será que, como a perspectiva do nosso argumento agora é de defesa, esses conceitos não servem e necessitamos de outros, por assim dizer, mais adequados?
A questão que estou colocando em pauta aqui, sintetizada e expressa da forma mais direta é: construímos [no âmbito da coletividade nacional], imagens [boas ou ruins] que nos representam como unidade social, independentemente do grau de ligação pessoal que temos com essas imagens, com o seu processo de construção e até mesmo do nosso sentimento de aceitação ou rejeição dessas imagens como representações nossas, no âmbito da individualidade. O Brasil pode até ser o país do futebol, mas um brasileiro como eu, por exemplo, desmente esse rótulo de brasilidade, ao chutar uma bola com a intenção de mandá-la para uma direção e vê-la tomar exatamente a direção oposta, numa demonstração óbvia de total falta de intimidade com uma prática cultural que se pretende representativa daquilo que eu sou, enquanto ser social. Culturalmente, então, isso me desqualifica como brasileiro?
Eu poderia dar o mesmo exemplo utilizando o carnaval, no lugar do futebol. E, em ambos os casos, poderia dizer que a falta de brasilidade está mais associada à falta de vivência com essas duas manifestações culturais do que com qualquer sentimento de desprezo por elas, necessariamente. Admito, porém, que nem uma coisa nem outra me apetecem como forma de investimento da minha atenção, do meu tempo e das minhas energias.
Entretanto, estes dois exemplos nem de longe constituem o foco da minha não identificação com aspectos da cultura nacional que, no âmbito da individualidade, pautado em motivações ideológico-afetivas, tenho o pleno direito de optar por não adotar como a minha cultura. De fato, os referidos aspectos – aqueles que rejeito deliberadamente – são pertencentes, em sua maior parcela, ao conjunto das manifestações classificadas como cultura de massa, por vezes confundida com cultura popular. Principalmente alguns padrões comportamentais, alimentados pela cultura de massa – e, ao mesmo tempo, servindo de alimento a ela – constituem meu foco aqui.
Particularmente, manifestações de uma falsa cultura popular, muito melhor definida como cultura de massa, situadas na área da música [mercado fonográfico, na verdade], como o atual funk, a chamada sofrência [degeneração tosca da bonita música sertaneja] e a swingueira, constituem o meu grande desgosto cultural nacional.
Villa Lobos defendia a música como a arte com maior capacidade de alcance popular, no que concordo em absoluto com o grande maestro brasileiro. Todavia, esse mesmo poder de alcance que fez da música uma arte tão apreciada e consumida, por vezes possibilitando, através dela, a veiculação de ideais nobres ou contestatórios, e até mesmo de reflexões críticas sobre a sociedade, vem sendo utilizado, aqui no Brasil, em nossos dias, como ferramenta difusora da mais pura banalidade, do total esvaziamento do senso crítico e do bom gosto dos nossos jovens e da população em geral.
Se o carnaval e o futebol não compõem a brasilidade essencial de brasileiros como eu [não é possível que não haja outros], em hipótese alguma essa pseudocultura popular atual fará isso. Em nada me sinto representado pelos códigos comportamentais de massa que veneram e exaltam tais manifestações [sub]culturais do nosso país. Principalmente porque essas manifestações ditam códigos comportamentais – o que é ainda mais drástico, trágico e alarmante.
E esse é um problema cultural gravíssimo do Brasil atual, pois essas manifestações, nutridas por questões mercadológicas, crescem progressivamente, e não se pode combatê-las com ações coercitivas, pois não constituem necessariamente crime ou coisa passiva de punição [apesar das graves consequências que projetam no processo social, como o estímulo ao vício e à prostituição]. Até porque são acatadas e praticadas espontaneamente pelas massas, além de estimuladas pela mídia aberta. O crime aqui, talvez, exista como coisa implícita, por parte daqueles que conduzem esse grande e riquíssimo mercado, e adotam uma atitude parasitária referente às intenções puramente lucrativas, em detrimento de quaisquer valores subjetivos verdadeiros, tão próprios à criação artística e às suas manifestações, inclusive as populares.
Bem, diante da minha total impotência, como indivíduo, no processo de deterioração cultural dentro do imenso contexto nacional, tudo que posso fazer é dizer, para finalizar, que na elaboração da minha imagem de autorreconhecimento como cidadão brasileiro, nada disso me representa, nada disso compõe a essência da brasilidade em mim.
E, para dissolver qualquer impressão de conservadorismo ou de postura intelectual preconceituosa da minha parte, deixo aqui um grande e caloroso abraço aos meus patrícios cantores de funk, swingueira e sofrência. A despeito do grande desserviço que prestam à cultura brasileira!


     
     









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