A LENDA DO CABEÇA DE CUIA (Na versão Eduardo Prazeres/2013)
Crispim era um jovem da antiga colônia de pescadores Barra do Poty, ou Vila do Poty, comunidade ribeirinha que daria origem à cidade de Teresina, em 1852. O rapaz nasceu em 1774 e desapareceu misteriosamente em 1792, em circunstâncias cercadas de rumores estranhos e jamais esclarecidas para os seus contemporâneos.
Apesar da infância pobre, conheceu o mais profundo afeto no seio familiar. Tinha em seu pai, Alcides, a figura de um grande herói, e na mãe, Hipólita, a personificação da generosidade e da ternura.
Ao completar 18 anos, Crispim sentiu desabrochar no peito o arrebatador sentimento de amor que o levou ao noivado com Maria, filha mais nova de sua madrinha, Noêmia. No entanto, a paixão dos dois jovens estava fadada a um final mais que trágico. Numa tarde de chuva torrencial do período de inverno, entregue a um momento de puro devaneio e buscando agradar a noiva, Crispim se aventurou a remar nas águas revoltas do Encontro dos Rios, ponto de confluência das águas do Parnaíba e do Poty, num perigoso passeio de canoa com Maria. E o pior aconteceu. A canoa virou, lançando o casal na violenta correnteza, e Maria se afogou. O corpo da jovem nunca foi encontrado. Noêmia, mãe de Maria e madrinha de Crispim, culpou imperdoavelmente o rapaz, passando a odiá-lo.
Alguns meses depois, quando Crispim nem mesmo tinha superado ainda a perda da noiva, seu pai, Alcides, morre de malária, doença que tanto ajudara a combater na região, ano após ano. Esse foi um golpe insuportável para a alma sensível do rapaz, que foi acometido por um surto de loucura e se lançou nas matas ribeirinhas, onde ficou desaparecido por muitos dias.
Certa tarde, triste pelos acontecimentos dos últimos tempos, Hipólita, a mãe de Crispim, é surpreendida pela reaparição do filho. Ela o recebe afetuosa e calorosamente, e o rapaz parece reagir bem a esse novo contato com o amor e o acolhimento materno. Quando, porém, Hipólita lhe serve o almoço, um pirão de mocotó de boi (fêmur bovino), Crispim, em sua confusão mental, atribui um grande constrangimento à mãe. Ele acredita que Hipólita se sente humilhada e envergonhada por ter que servir ao filho uma comida tão diferente da habitual, de quando Alcides estava vivo e pescava todos os dias – os saborosos peixes do Parnaíba e do Poty. Assim, num rompante, ele colhe do prato o mocotó de boi e o atira para longe, atingindo a parede de taipa do outro lado da sala. Assustada com a atitude inédita de seu filho, temerosa de que ele tivesse um surto agressivo, Hipólita tenta se afastar bruscamente, mas tropeça, cai e bate fortemente a cabeça no fêmur bovino, rachando o próprio crânio. Crispim acorre imediatamente, em seu socorro, tomando nos braços a mãe ensanguentada. Era tarde demais. Hipólita estava morta. Aos prantos, Crispim mais uma vez pega a peça de osso, agora banhada em sangue, no intuito de atirá-la para longe de si.
Neste exato momento, numa visita casual à comadre, Noêmia entra de porta a dentro e presencia a cena: Crispim com a mãe ensanguentada nos braços e empunhando numa das mãos o pedaço de osso, gotejante do sangue materno. Num julgamento precipitado, Noêmia se convence de que está diante de um assassinato. Seu coração se infla ainda mais do ódio já nutrido pelo rapaz, certa de que ele acaba de matar a própria mãe. Movida por esses sentimentos, Noêmia ergue as mãos aos céus, invocando sua autoridade de madrinha e a hora do Angelus – era meio-dia –, e roga uma terrível maldição sobre o afilhado. Crispim deveria se tornar um monstro das águas, e só se libertaria dessa condição, um dia, quando sacrificasse e devorasse o coração de sete Marias virgens. Clamando, pranteando e tropeçando, Crispim corre até a ribanceira da margem do rio, se lança nas águas e desaparece. Assim como o de Maria, seu corpo nunca foi encontrado.
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