Capítulo 1 do meu livro inédito SÁRDIRUS - A TERRA LENDÁRIA DO AGRESTE
1 –
LONGÍNQUA E DESEJADA
Campo
Maior, Piauí
Janeiro
de 1995
Eu acreditava que tudo que estava prestes a acontecer era apenas a
realização de um antigo sonho, sem suspeitar que houvesse um preço a pagar. No
entanto, naqueles próximos dias, eu iria descobrir que transformar os nossos
sonhos em realizações grandiosas, embora seja isso que deva mover nossas vidas,
é uma atitude que sempre terá o seu preço. (Leônidas)
–
– Pai, vamos de moto-taxi? – pediu o menino,
assim que desembarcou do ônibus.
Wellington
jamais contrariava os desejos do filho no período de férias, principalmente por
causa do ótimo desempenho escolar do garoto o ano inteiro e do precoce bom
senso que Leônidas sempre demonstrara desde muito pequeno, quase nunca pedindo
coisas extravagantes. E mesmo pequenas extravagâncias às vezes lhe eram
concedidas. Às vezes.
– Vamos
de taxi sim, Leozinho. Mas no quatro-rodas mais confortável que a gente
encontrar – foi a resposta do pai.
Outra
virtude do garoto era não impor aos pais a satisfação dos seus desejos a
qualquer custo, reclamando ou fazendo cara de emburrado. Leônidas não era esse
tipo de filho único, que tira proveito da situação de não ter um concorrente
com quem dividir a atenção e o carinho dos pais.
Claro que
ficava frustrado, como qualquer ser humano, independente da idade, quando
desejava algo que não podia ter. Mas nessas horas exercia o seu invejável dom
de se concentrar nas coisas boas que já tinha, que já podia usufruir, e
aceitava sem ressentimentos o momento da negação.
– Wellington
– disse Rita, quase ao pé do ouvido do marido –, as malas precisam ir de carro.
Mas... o nosso filho talvez pense um pouco diferente delas.
Wellington
olha surpreso para a esposa.
– E
depois você conta para os nossos amigos que nas férias eu é que sou o senhor “pode tudo, meu filho”.
Rita
sorri.
– Leozinho
– começa a se retratar Wellington –, talvez a gente não deva deixar que a
opinião das malas decida como vamos chegar à casa da sua tia. Que tal se nós
deixarmos sua mãe ir de taxi, como supervisora das bagagens, e eu e você
pegarmos um ventinho no rosto até lá?
– Ia ser
demais, pai – diz o garoto, corando de satisfação e olhando agradecido para a
mãe, a quem sabe que realmente deve aquela concessão.
– Você
acha que suporta minha ausência por cinco minutos, querida? – pergunta
Wellington, simulando uma expressão dramática.
– Se você
me der um beijo antes de tão longa separação... – responde Rita, no mesmo tom.
E
Wellington, se dirigindo a Leônidas:
– O que
você acha? Será que a nossa aventura compensa eu dar uma chance a ela?
– Pai! –
exclama o garoto, segurando o riso mas achando que o pai exagerou no gracejo.
No
instante seguinte Wellington está abraçando carinhosamente a esposa, a qual se
esquiva dos seus beijos, por sua vez simulando aborrecimento.
Logo um
taxista se aproxima, oferecendo seus serviços. E, conforme o combinado, Rita
embarca sozinha no carro, levando as malas, enquanto o marido e o filho se
dirigem ao terminal dos mototaxistas, embarcando um minuto depois, cada um em
uma moto.
– Se o
rapazinho aí pedir pra você fazer um pega,
diga a ele que eu não autorizo – recomenda Wellington ao piloto da moto de
Leônidas.
– Pode
deixar, senhor – responde o motoqueiro.
– Mas se
eu resolver pedir, bote pra quebrar – completa Wellington, para a surpresa e o
riso dos dois motoqueiros e do próprio filho.
As duas motos, saindo da rodoviária e seguindo
de perto o taxi em que está Rita, deixam a avenida asfaltada e pegam a rua de
calçamento do Colégio Estadual, percorrendo apenas um pequeno quarteirão e logo
virando à direita para pegar a alameda que circunda todo o Açude Grande, um dos
encantos da cidade para Leônidas, desde quando pisou ali pela primeira vez,
havia muitos anos.
Ao fazer
a curva e entrar na alameda, os olhos de Leônidas se dilataram diante da visão
que, mesmo longínqua, sempre fora o seu grande fascínio na cidade de Campo
Maior – a Serra de Santo Antonio.
Wellington
pediu ao seu motoqueiro que se mantivesse um pouco atrás da moto de Leônidas.
Ele conhecia a paixão do filho pela serra, e havia prometido que esse ano
fariam a tão sonhada excursão em família. Nos anos anteriores, boatos acerca de
uma onça atacando os aventureiros tinham afastado da serra até mesmo os
moradores da cidade. Eram rumores já bem antigos, surgidos na década de 1980,
quando realmente houve um ataque fatal a uma moradora das cercanias. As
autoridades não conseguiram localizar e capturar o animal, mas, segundo a
lenda, caçadores da região haviam se unido e armado tocaias durante vários
dias, até que finalmente tiveram sua vingança, exterminando a fera. O fato é
que nenhum outro ataque jamais se confirmou. Contudo, as aparições da onça e
suas tentativas de fazer mais vítimas continuaram a ser relatadas entre os
caçadores forasteiros e ocasionais visitantes da serra, o que reduziu bastante
o fluxo de moradores da cidade por aquelas bandas.
Nos
últimos tempos, porém, os passeios à serra vinham sendo retomados pelas
famílias mais humildes de Campo Maior, que tinham naquele ambiente natural uma
área de lazer deliciosa e gratuita, principalmente no período das chuvas,
quando os mais variados e vivos tons de verde da vegetação decoravam a
belíssima estrutura de pedra e seus arredores, e uma pequena nascente no topo
da montanha dava origem a uma linda cachoeira, que deliciava crianças e
adultos.
Sem
perceber que o pai o observava, Leônidas espichava o pescoço na garupa da moto,
inclinando-se para o lado e desbloqueando a visão do corpo do motoqueiro à sua
frente, projetando todo o seu desejo de já estar naquele lugar mágico, o qual
parecia chamá-lo numa voz encantada que vibrava suavemente em todo o ar à sua
volta, mas que somente ele era capaz de ouvir.
Wellington
observava o filho, compreendendo exatamente o que o garoto sentia com relação
ao seu objeto do desejo. Enquanto as duas motos trepidavam no calçamento da
alameda, às margens do Açude Grande, Wellington ajustava a visão para contemplar
o encantamento do menino de 13 anos por uma coisa que, para os milhares de
habitantes da cidade, não passava de uma imagem corriqueira, que se acostumaram
a ver todos os dias desde quando nasceram e por isso, para eles, não continha
muita coisa de especial.
Embevecido,
recordava-se de como o filho havia ficado petrificado ao pôr os olhos na Serra
de Santo Antonio pela primeira vez, muitos anos antes, quando ainda era um
menininho recém-alfabetizado, em sua primeira viagem de férias a Campo Maior.
– Que
montanha bonita, pai! – tinha dito o pequeno Leozinho naquela ocasião.
– É a
Serra de Santo Antonio, filho. É muito bonita mesmo.
– Me leva
lá, pai.
– Um dia
eu levo sim. Mas, por enquanto, não podemos nem pensar em nos aproximarmos
dela.
– Por quê?
É tão pertinho.
– Em
primeiro lugar, não é tão pertinho não. É que ela é bem alta, e daqui até lá
não existem prédios, como em Teresina, para encobrir a visão. Mas são mais de
dez quilômetros, e isso quer dizer que não é tão pertinho assim como você está
imaginando. Em segundo lugar, dizem que lá está morando uma onça muito feroz,
que machuca as pessoas. Só quando a onça for embora é que as pessoas vão poder
passear por lá de novo. Aí sim, nós iremos também.
– Os
caçadores vão atirar nela, pai?
–
Leozinho?!
– Não sou
mais criança. Sei muito bem que se a onça machucou alguém, eles vão matar ela.
Só que lá é a casa dela, ela tem direito de ficar lá. Se ela não gosta que a
gente ande lá, a gente tem que obedecer, porque ela é a dona da casa. A
montanha é muito bonita, pai. Se eu fosse a onça, eu também iria ter ciúmes dela.
Mas eu não iria machucar ninguém, pros caçadores não atirarem em mim.
– Pelo
visto, você seria uma onça bem mais esperta.
Depois
dessa conversa com o pai, Leônidas havia se calado e se recostado ao tronco do
pé de azeitona, no quintal da casa de Sofia, sua tia, e ficado horas admirando
a bela elevação natural, como quem encontrou algo que realmente fará parte de
sua vida para sempre.
Nos anos
seguintes, em cada nova viagem de férias à cidade, Wellington observava que o
fascínio do filho pela montanha não tinha sido apenas o impacto da primeira
vista. Sempre que se encontrava no quintal da casa de sua tia, ou em qualquer
outro ponto da cidade de onde era possível avistar a serra, Leozinho olhava
longamente para aquela imagem distante com uma tal paixão nos olhos, que era
quase possível ouvir a voz do seu pensamento prometendo: “Um dia vou até você!”
Observando
o filho agora, todo espichado na garupa da moto em movimento à sua frente, Wellington
tinha a certeza de que dessa vez a aventura adiada durante tantos anos teria de
se realizar, e os pés de Leônidas finalmente pisariam aquele solo rochoso que
sua alma elegera como o lugar dos sonhos.
(Continua no próximo post)
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