MARÇO, E AS GUERRAS DO PASSADO E DO PRESENTE
Lamentavelmente, um dos
maiores pilares da nossa civilização é a guerra.
Um mundo onde isso não fosse
verdade, seria o mundo dos sonhos. Todos os territórios do nosso planeta, hoje
constituídos como países e nações civilizadas, carregam na história da origem
dessa instituição político-territorial a marca da guerra, com todas as suas
atrocidades, crimes e violência.
Aqui no Brasil, não poderia
ser diferente. Nenhuma história de colonização se deu em moldes pacíficos de
relacionamento entre colonizados e colonizadores. E houve também a mudança de
regime, de monarquia para república, outro processo responsável por páginas
dramáticas da história nacional. É importante frisar que o registro histórico
desses processos é sempre seletivo, uma seleção feita pelos próprios
historiadores, guiada geralmente por interesses de natureza econômica, política
e ideológica.
Este é
o caso da Batalha do Jenipapo, ocorrida em 13 de Março de 1823, durante a revolução
pela independência do Brasil, no município piauiense de Campo maior, entre
tropas do exército português, com todo o seu poderio bélico, e uma milícia patriota
separatista, composta de poucos soldados precariamente armados e uma enorme
massa de camponeses locais, entre vaqueiros, roceiros, escravos e homens do
povo em geral, armados de “bate-buchas” e de suas ferramentas de trabalho. Enquanto
o tranquilo “grito do Ipiranga” figura em absolutamente todos os livros
didáticos da história nacional, o brutal e sangrento massacre do Jenipapo
permanece quase desconhecido fora do estado do Piauí, palco dos acontecimentos.
Em memória dos conterrâneos que
deram suas vidas pela liberdade da nação na Batalha do Jenipapo, o governo do
estado do Piauí promove anualmente o espetáculo teatral que conta a história da
guerra. Produzido sempre no mês de Março, o espetáculo é apresentado no dia 13,
no largo do Monumento aos Heróis do Jenipapo, à margem do rio Jenipapo e do
cemitério dos heróis, portanto, na data e no local onde se deu a batalha.
Este ano de 2022, véspera do
bicentenário da Batalha do Jenipapo, enquanto os preparativos da montagem
teatral são feitos, presenciamos estarrecidos um acontecimento tão trágico
quanto irônico, para todos os que participam do espetáculo, e que talvez tenha
a ver com o aspecto cíclico da história da humanidade – o deflagrar da guerra
de invasão da Rússia contra a Ucrânia. Iniciada em 24 de Fevereiro, e até
agora, 05 de Março, em pleno andamento, a ação bélica russa já é classificada
por vários analistas como “a maior invasão militar na Europa desde a Segunda
Guerra Mundial”.
Temos acompanhado
diariamente, pelos noticiários, todo o sofrimento do povo ucraniano, assim como
de imigrantes naquele país, inclusive inúmeros brasileiros, que fogem ou tentam
fugir da violência da guerra, nas mais precárias condições, deixando suas
posses e suas bases de sobrevivência para trás. A dramática separação das
famílias nas zonas de fronteira, onde pais e maridos se despedem de seus filhos
e suas esposas, sem nenhuma garantia do sonhado reencontro, é apenas um fator
dos horrores dessa guerra insana. A cada dia, uma nova atrocidade. Os
constantes ataques a alvos civis e diretamente à população civil já
caracterizam verdadeiros crimes de guerra do governo de Vladimir Putin. Sem
contar a violação dos direitos internacionais representada pelo ataque russo à
usina nuclear de Zaporizhzhia, a maior da Europa, no sudeste da Ucrânia.
Tudo isso nos leva a um tipo de questionamento tão interessante quanto
incômodo, e ao mesmo tempo revelador, sobre o caráter da humanidade: Qual
o paralelo possível entre a mentalidade e o grau de civilização do ser humano
do século 19 e o do século 21? Ou, até mesmo (diante da ferocidade e do descompromisso com o coletivo),
qual a diferença entre o ser humano da Idade da Pedra
Lascada e o do século 21?
Somos mesmo a espécie evoluída e civilizada que alegamos ser?
Por que o artifício da guerra?
Sim, temos algo mais sofisticado: o terrorismo psicológico!
Se alguém interferir, minhas
armas nucleares estão prontinhas! – não é verdade, mister Putin?
Em milênios de avanços tecnológicos, científicos e filosóficos, conseguimos
nos diferenciar muito pouco dos Homens das Cavernas quando o assunto é domínio
territorial. Poder, de um modo geral. Você já ouviu falar de Fidié? João José
da Cunha Fidié. Não? E de Putin? Ah, Putin você sabe quem é. Então relaxa! Um
agiu em 1823, e o ouro está agindo em 2022, mas acredite – passando na peneira,
coando no pano de café, dá no mesmo. Se perguntar para o Putin, ele vai
discordar, é claro. O Fidié era um major do exército português do século 19. O
Putin é um presidente russo do século 21. “Aquele
homem não possuía metade do meu intelecto, nem era civilizado a metade do que
eu sou”
– diria Putin.
Ainda assim, tanto os cidadãos e cidadãs ucranianos de hoje como os
camponeses de Campo Maior de 1823, reconheceriam facilmente as similaridades
entre homens como Putin e Fidié. Claro que diferenças pontuais existem. Mas é inegavelmente
alarmante a maneira como a ganância, o desejo irrefreado de domínio e poder,
consegue igualar seres humanos de um passado dito bárbaro e os de um presente
dito civilizado.
Encerro este artigo com as palavras de Fernando Pessoa, em sua obra Livro
do Desassossego,
que também utilizo como epígrafe do meu romance UM
DIA EM 1823,
sobre a Batalha do Jenipapo:
“As guerras e as revoluções - há sempre uma
ou outra em curso - chegam, na leitura dos seus efeitos, a causar não horror,
mas tédio. Não é a crueldade de todos aqueles mortos e feridos, o sacrifício de
todos os que morrem batendo-se, ou são mortos sem que se batam, que pesa
duramente na alma: é a estupidez que sacrifica vidas e haveres a qualquer coisa
inevitavelmente inútil.
Todos os ideais e todas as ambições são um desvario de comadres homens.
Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança. Não há
ideal que mereça o sacrifício de um comboio de lata. Que império é útil ou que
ideal profícuo?”
Por: Eduardo Prazeres
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