O VIRA-PORCA
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pequena doação. Instruções no rodapé, ao final do texto.
João
Grande já era conhecido na vila antes de ir morar ali. Os moleques o viam
passar empurrando seu carrinho de picolé. Quando ele gemia seu prolongado colêêê eles corriam para dentro de casa
e o espreitavam pelas brechas das cercas ou das janelas fechadas, até que ele
terminasse de passar.
–
Vocês agora deram pra ter medo de gente?
–
Mãe, ele parece um bicho.
–
Coitado. Ele tá é na luta pra sobreviver, igualzinho o pai de vocês. E deixem
de ficar apelidando o pobre do velho. Ele é um ser humano, merece respeito.
–
Pois pra mim ele vira é lobisomem.
–
Menino!
Toda tarde a cena se repetia, na hora do
calor mais forte, quando João Grande passava empurrando o seu carrinho de
picolé. Até que, depois de uns tempos, ele passou a ser visto não só no horário
costumeiro, mas também pela manhã e à boca da noite, sem o carrinho ganha-pão.
–
Seu João! Venha cá, não leve a mal a pergunta: o senhor agora está morando por
aqui?
–
Sim senhora.
–
Não me diga que ganhou um dos terrenos no loteamento da prefeitura, lá pra
baixo?
–
Sim senhora.
–
Ah seu João! Que bom. Meus parabéns, viu.
–
Tobrigado.
Os meninos não deixaram de inspecionar o
local onde o velho construíra seu casebre. Mas com toda a discrição, passando
por ali como quem não quer nada, mantendo em absoluto sigilo a sua
investigação.
–
E agora? O povo da vila não sabe o risco que tá correndo.
–
Esse velho empaltado deve tá planejando comer todo mundo por aqui.
–
Todo mundo não. Só os pagãos. Ele vai comer todos os meninos da vila que ainda
não são batizados.
–
Ai ai ai. O maninho tem seis meses, mas a mamãe já disse que só vai batizar ele
em dezembro. Será que ele tá na lista do velho?
–
Calma. A gente vai ter que bolar alguma idéia pra salvar todo mundo.
João Grande morava só. Trabalhava muito.
Bem cedo via-se a fumaça do seu fogareiro subindo e se misturando aos primeiros
tons coloridos da alvorada. Aprontava e bebia rápido o seu café , e tocava para
a sorveteria. Ganhava pouco, mas tinha a confiança do patrão por já ser um
empregado antigo, e podia pedir um vale sempre que precisasse ao longo do mês.
Na vila, o medo dos meninos foi ganhando
espaço na galhofa dos adultos. Quando João Grande passava apregoando o seu
arrastado colêêê , havia sempre algum
apresentado que respondia ao longe:
–
Fala, Vira-Porca.
Por não ouvir ou por não se importar, o
velho seguia indiferente, sempre empurrando lento o seu carrinho de picolé.
–
Ele finge que não liga porque vai se vingar – diziam os meninos. – Ele não liga
agora, mas está marcando seus inimigos. Quando a lua estiver cheia ele vai se
transformar e caçar cada um deles.
Desse modo, no intuito de proteger os
parentes e amigos, os meninos aconselhavam:
–
Não mexam com ele, é sério. Quando ele virar bicho vai estar cheio de ódio por
causa das provocações, e vai se vingar. É sério, ele vai comer todos os
inimigos.
As mães já não sabiam o que fazer para
banir aquela superstição. Muitas proibiram seus filhos de fazerem aqueles
comentários sobre o pobre homem, tentando enfatizar suas qualidades de pessoa
de bem. Tal proibição só tinha eficácia dentro de casa, porque nas rodas de
culumins não se falava de outra coisa. Quando a lua ficou cheia, sua fase mais
inspiradora de sentimentos místicos, as cogitações redobraram.
–
A gente tem que ir na paróquia conseguir um pouco de água-benta e ficar
preparado. Ele vai atacar.
–
Será que ele invade as casas?
–
Não. Fica só rondando depois da meia-noite. Anda pelas ruas escuras, à procura
de alguém que esteja de bobeira. Ou fica em volta da casa de um inimigo, se
fingindo de ladrão pra chamar a atenção e atrair o inimigo pra fora.
À boca da noite João Grande passava de
volta para casa, já sem o carrinho de picolé, passo lento e largo. Alto, muito
magro, semblante contraído, olhos fundos, os pomos das faces avantajados, barba
e cabelos da cor de algodão, pele negra bastante enrugada. Indiferente. Não era
de ficar sentado no terreiro conversando com os vizinhos. Sempre fechava cedo a
sua porta, só tornando a abri-la para acender o fogareiro no quintal, ao
amanhecer. Às vezes, mas raramente, encostava no bar da esquina para comprar
uma dose de cachaça, antes de dormir. Só que não bebia lá, levava o aguardente
para casa num caneco de alumínio.
Ninguém sabia dizer de onde vinha o
picolezeiro, se já havia tido família, filhos, nada. O povo da vila
acostumara-se a respeitar o jeito reservado do velho. Exceto pelas piadas que o
tinham como protagonista, por causa dos boatos dos meninos.
–
Ele deve ter matado a mulher e os filhos – cogitavam os moleques.
–
Ou então teve uma filha mulher e se apossou dela. Por isso vira bicho.
–
Isso se não tiver se apossado da própria mãe.
E fazia-se uma verdadeira apologia à
maldição do velho picolezeiro.
Talvez por causa das gaiatices de
alguns, inspiradas nos boatos da molecada, João Grande foi deixando de fazer o
seu trabalho ali na vila. O arrastado colêêê
foi deixando de ser ouvido por ali nas tardes quentes. De manhã o velho
passava cedo, e só se via ele passando de volta no comecinho da noite, para se
trancar em seu casebre com sabe-se lá que pensamentos.
Lá pelo terceiro dia da lua cheia, no
finalzinho da tarde, o tempo fechou de repente, com ar de que ia chover. A
ventania bateu portas e impregnou o ar de poeira. Por volta das sete horas o
chuvisco que vinha caindo se converteu em chuva torrencial, obrigando a
população da vila a se recolher bem mais cedo. Umas dez horas ouviu-se um
estouro, ao qual se seguiu completa escuridão
–
Maldição. A porcaria do transformador queimou de novo.
Pouco depois a chuva passou. E quando a
lua, surgindo como um sol noturno, finalmente venceu a densidade das nuvens,
encontrou a vila mergulhada em trevas e silêncio. E iluminou-a.
Suponhamos agora uma imagem aérea da vila.
Vemos lá embaixo, através da claridade amarelada da lua cheia rodeada de nuvens
escuras, trechos de telhados e de quintais, além das ruas estreitas e sem
calçamento, sombreadas em vários pontos pelas árvores nos terreiros das casas.
Nada se move. Até mesmo os cães vadios foram se abrigar em algum recanto por
causa do frio. Focalizemos agora o telhado de uma casa. Ela é de taipa, tem uma
cerca de arame farpado toda preenchida com talo de coco e um banheiro feito de
palha no cantinho do quintal. Por causa da sombra da mangueira alta não vemos
nada, a não ser uma metade desse banheiro. Agora, como num close duma câmera de
cinema, façamos uma aproximação gradativa deste telhado, descendo até chegarmos
bem perto. Um pouco mais. Mais ainda. Toquemos e ultrapassemos o telhado com a
nossa visão, para nos depararmos lá dentro, no quarto semi-iluminado por uma
lamparina, com os olhos dilatados do menino apavorado no fundo de sua rede.
Ele ouvira alguma coisa lá fora, pensou
em chamar o pai, mas achou melhor apurar o ouvido e observar. Algo veio pisando
leve pelo beco, entre a casa e a cerca. Parou ao emparelhar com a parede do seu
quarto, deixando escapar um abafado rosnar.
“É ele” – pensou o menino. “Bem que eu percebi
o jeito que ele olhou pra mim da última vez. Estava me marcando. E agora veio
me pegar. Ai, meu pai, ele veio me pegar.”
Atônito, decidiu levantar na ponta dos
pés e chamar seu pai. Não havia outro jeito. Porém, era tarde demais. Seu corpo
estava paralisado de medo, não podia se mover. Esboçou um grito de socorro, mas
tudo que conseguiu produzir com a voz foi um sussurro tão espremido que ele
mesmo quase não ouviu. Começou a chorar.
A coisa lá fora voltou a se mover, indo
em direção ao quintal. Esbarrou num monte de garrafas de vidro, quebrando
algumas. O ruído forte trouxe ao menino a esperança de que o pai acordasse. No
entanto o que se seguiu foi um silêncio pesado, o pai não apareceu na porta do
quarto e o menino voltou a estremecer, percebendo um surdo arranhar na porta da
cozinha. “Meu Deus, por que papai não acorda? Por quê?”
Veio outro silêncio. E então o terror do
menino atingiu o ápice ao sentir que agora havia passos dentro de casa. Mais
que isso – dentro do quarto, indo na direção da sua rede.
–
Ouviu isso? – perguntou o pai do menino, sacudindo o punho da rede.
Ao notar que era o seu pai que havia
acordado e estava ali, foi como se a camada de gelo que envolvia e petrificava
o corpo do menino tivesse se partido e despedaçado em milhares de fragmentos,
libertando-o. Saltou da rede, agarrando-se imediatamente com aquele herói tão
confiável.
–
Pai! Graças a Deus que o senhor acordou, pai. É ele que tá lá fora. Ele sabe
que eu conheço o segredo dele e quer me pegar. Não deixe ele me pegar, pai, não
deixe.
O homem abraçou o menino e conteve o
ímpeto de uma gargalhada. Mas lá fora houve uma nova queda de garrafas e outro
barulho de vidro se espatifando.
–
Escute, vá para o outro quarto ficar com a sua mãe que eu vou lá fora botar
esse ladrão safado pra correr.
–
Não, pai. O senhor não pode ir lá fora. Não é ladrão não. É ele, o Vira-Porca.
Dessa vez o homem sorriu sem
constrangimento. Mas foi tratando de conduzir o menino pelo braço até o outro
quarto, armou-se com o seu pontudo facão de dois gumes, pegou uma lanterna e
saiu pela porta da cozinha. Vasculhou todo o quintal, andou em volta da casa
pelos dois becos laterais inundados. Abriu a cancela do terreiro e ficou a
observar a rua por um minuto. Estava tudo deserto e silencioso. Voltando pelo
quintal, juntou os cacos das garrafas quebradas, único indício de que alguém –
ou algo – esteve ali.
–
Se não era ladrão era algum cachorro ou porco da vizinhança, solto por aí –
disse o homem já dentro de casa, para o filho e a mulher que também acordara.
–
A cancela do terreiro estava aberta? – perguntou o menino a seu pai.
–
Não.
–
Tinha alguma brecha nos talos da cerca?
–
Também não.
–
Pois então, pai! Como era que um cachorro ou um porco ia entrar no quintal com
a cancela fechada e sem fazer brecha na cerca?
–
Então era ladrão. Só podia ser.
–
Não, pai. Era ele. Era o Vira-Porca, eu tenho certeza. Posso dormir aqui com
vocês, só por hoje?
A verdade é que o menino não tinha mais
a intenção de dormir sozinho enquanto a lua estivesse cheia. Nem naquele mês
nem nunca mais.
Distante dali, lá nos terrenos de baixo,
no loteamento da prefeitura, onde os vários quintais ainda não haviam sido
separados por cercas, um homem saiu para fora no meio da escuridão, a fim de
usar o banheiro. Quando retornava, antes de entrar novamente em casa ouviu o
som de uma porta batendo, bem próximo. Virou-se para ver. E percebeu que a
porta que se fechava com grosseria era a porta da cozinha de João Grande.
“Ué, seu João Grande tava fora de casa a
essas horas e com essa escuridão toda? Eu, hem!” – pensou o homem, e foi
dormir.
PS: Eduardo Prazeres vive hoje de sua produção escrita, de forma
independente, publicando e vendendo seus livros pessoalmente em escolas,
empresas e eventos. No entanto, a
renda obtida pelo autor com esse trabalho, de um modo geral, vem sendo baixa,
gerando dificuldades financeiras. Pensando nisso, convidamos você a contribuir
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AGÊNCIA:
2004; OPERAÇÃO: 013; CONTA: 00053253-2; TITULAR: Eduardo Prazeres Fonseca;
Caixa Econômica Federal.
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