POR QUE ESCREVER CRÔNICAS?




Ando inclinado a escrever crônicas.
            Aliás, nos últimos dias, esse desejo tem se mostrado uma revelação, pelo ímpeto com que tem me puxado para este domínio da criação literária, caracterizado basicamente pela fusão da estética com o documental. E se isto que acabo de afirmar servir como mote de riso escarnecedor aos mais entendidos no assunto, tudo o que tenho a dizer em minha defesa é: “Preparem-se, esta é apenas a primeira das muitas e incontroláveis gargalhadas que eu ainda hei de arrancar-vos.” É que, por enquanto, por ainda não ter pegado o jeito da coisa, tudo que eu vier a escrever numa crônica ou sobre uma crônica não estará livre do risco de estar completamente fora de lugar, infringindo todas as normas do gênero ou até chegando ao extremo de, mesmo com a melhor das intenções, desonrá-lo. Mas é preciso reconhecer que o aprendizado empírico tem dessas coisas. A gente erra, erra, até o momento em que consegue fazer direito – ou até cometer o erro dos erros: começar a achar que está direito o que está indo de mal a pior.
            E por que toda essa exposição? Por que me arriscar a revelar uma faceta de mal escritor, praticando um gênero que ainda não domino, quando, no âmbito da ficção, já consigo um desempenho pelo menos satisfatório?
            Bem, talvez a gênese do problema esteja num muito íntimo sentimento de culpa que carrego por não ser um escritor engajado. Nasci e me criei no universo da periferia; conheci desde cedo o sentido prático do termo “desigualdade social”, mesmo antes de saber escrever ou pronunciar direito a palavra “desigualdade”, e que era esse o nome daquilo que eu vivia na nossa casinha de taipa, naquela romântica e adorável ruazinha sem calçamento, onde eu brincava de “salva latinha”, do “atrepa”, do “trisca”, da “bandeira”, e, mais tarde, de “caí no poço”. Assim, ao me tornar um escritor, o mínimo que eu tinha a obrigação de fazer, no bom exercício da minha cidadania, era ser um escritor engajado, cuja obra – independentemente do gênero em que fosse concebida – retratasse, denunciasse e avaliasse as questões sócio-políticas do meu país.
            Em vez disso, o que faço eu? Torno-me um escritor de ficção fantástica! Pelo amor de Deus! Isso é pior do que ser um escritor de ficção científica, porque esta, ao menos, por mais absurda que pareça, procura manter os pés fincados na realidade – nem que seja na ponta dos dedos, como fazem as bailarinas. Já a ficção fantástica, não; esta é completamente irresponsável; não se fundamenta em conceitos comprováveis; nega a lógica e a epistemologia das coisas; não se interessa pelo mundo tangível, mundo que é, mundo que se vê; e quando o faz, é apenas para tomá-lo como pano de fundo ou mero acessório de um mundo que, muito pouco provavelmente, poderia ser.
No entanto, depois de ter dormido ouvindo as histórias de João Preguiçoso, contadas pela minha mãe, durante toda a minha infância; de ter ouvido, ainda, do meu avô Afonso, sentado na beirada de sua rede nas tardes quentes de Teresina dos anos 80, as histórias dos heróis anônimos já praticamente apagadas da minha memória; de ter começado a ler Literatura Brasileira por Memórias Póstumas de Brás Cubas; de, posteriormente, ter sido arrebatado pela obra de Franz Kafka e de Edgar Alan Poe, eu não teria como escapar da sina de me tornar um contador de histórias fantásticas. Ao desejar, pela primeira vez, escrever uma história, percebi que o mundo ao meu redor era real demais (absurdo demais?) para se colher, nele, um enredo que tocasse a essência transcendental contida na alma de cada homem e cada mulher.
E assim, por constatação e não por fidelidade a ideologias estéticas ou sociológicas, passei a escrever sobre coisas e seres, digamos assim, desconectados da realidade imediata na qual nos vangloriamos de viver. Talvez as histórias de João Preguiçoso, contadas pela minha mãe, e as outras, narradas pelo meu avô, tenham encontrado dentro de mim um eco, através do qual buscaram se reproduzir e ter continuidade ao longo do tempo. Histórias-vírus, reproduzindo-se independentemente e com elevado grau de contágio.
Todavia, cumprindo a minha sentença de homem da era da mídia, ao assistir na TV ou ler num periódico a notícia de catástrofes naturais, corrupção política, crise econômica, violência, alterações climáticas e outros inúmeros eventos e fatos “reais”, sou acometido por um estranho sentimento de deserção da realidade. Um tipo de auto-acusação, apontando a minha atitude de escrever ficção fantástica como uma postura cômoda demais ou fuga. Tanta coisa “real” acontecendo, e eu escrevendo coisas “absurdas”. Como posso ser tão insensível?
Foi matutando este e outros aspectos da minha profissão que eu cheguei à conclusão de que devia escrever crônicas. Não por achar que a crônica me libertará definitivamente do gosto – ou necessidade – de uma escapadinha do mundo real (se é que as minhas escapadinhas não são “para” o mundo real), mas porque ela, a crônica, talvez me ajude a assinalar um pouco melhor a minha presença neste mundo. Gênero literário mais próximo ao factual-objetivo, e ao mesmo tempo de estrutura sintética, é provável que ela possa me proporcionar agradáveis e proveitosos passeios nesse lugar tão estranho, enigmático e, por vezes, absurdo, chamado mundo real.
Com isto, cumpro também o meu dever cidadão de me engajar (engasgar?) um pouquinho mais como ser social participativo e compromissado com o progresso (de quem?) e o bom andamento das coisas (pra onde?)



Eduardo Prazeres

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